domingo, 8 de agosto de 2021

DOIS (OU TRÊS) GRANDES LIVROS PARA FÉRIAS

 

(A modorra das férias de agosto começa a instalar-se lentamente, misturada com resquícios de trabalho que é necessário preparar para a rentrée de setembro. Férias de proximidade pois é necessário acompanhar de perto a recuperação do Hugo, com válvula biológica no coração, longa vida para ti. E, na antecâmara da modorra, nada melhor do que preparar as leituras para a acompanhar, mesmo com aquela estranha sensação de que não há ano em que os planos de leitura sejam cumpridos com rigor. Nessa ordem de ideias, começo a preparar o material, começando por uma categoria indisciplinadamente por mim caracterizada como ensaio-história-biografias).

Reuni para esta categoria apenas dois livros, pois o seu número de páginas assusta qualquer e, no quadro de um exercício a que me submeto com disciplina religiosa, um testará se o meu francês lido continua em forma e o outro avaliará se a minha fluência de leitura em inglês melhora ou não significativamente. Ambos referências de 2021, trazidas por já não sei que radar especial.

A obra em francês chama-se “Un Étranger Nommé Picasso – Dossier de Police nº 74.6664”(Fayard) e é de autoria de Anne Cohen-Solal uma ensaísta francesa que tem escrito abundantemente sobre arte, criação e distribuição artísticas. Pelo que já pude aperceber-me, a obra é fascinante e investiga as condições de vigilância especial pela polícia francesa dos anos de instalação de Picasso em Paris, investigação que como a Anne Cohen-Solal explicita com clareza só pode explicar-se pelo seguinte: “Na origem destes documentos, não identifiquei qualquer crime ou delito, com exceção do de não ser francês. O selo ESPANHOL em letras maiúsculas, colocado em alguns textos, assinala uma diferença, uma exclusão, uma suspeição, um estigma”.

De certa maneira, trata-se de uma obra de reconstrução biográfica do tempo de implantação de Picasso em Paris, sinalizado como anarquista em 18 de junho de 1901 cerca de 15 antes da sua primeira exposição na cidade da Luz. E há mais mistérios como o sequestro pelo governo francês de cerca de 700 obras do período cubista durante quase dez anos ou como a ausência de obras de Picasso do património público francês até 1947. O que significa que a instalação de Picasso não foi fácil e que o mergulho nesse tempo difícil é também uma forma de reconstituição da primeira metade do século XX, construída a partir da perspetiva de alguém que entende bem o fenómeno da criação artística e da sua afirmação junto do público e dos políticos. É fascinante acompanhar as dificuldades de afirmação de alguém que acabou por se transformar num decisivo fator de modernização do país que o vigiou com minúcia antes da sua afirmação.

O outro livro é uma autobiografia de alguém que faz parte da minha formação em economia, Amartya Sen. Chama-se Home in the World – a Memoir, data também de 2021 e é publicado pela Allen Lane. É uma poderosa reconstituição do contexto para compreender toda a obra de Sen, Nobel no mesmo ano de Saramago e que tanto impressionou o nosso Nobel pois nunca imaginaria encontrar um economista com aquela amplitude de perspetivas. Das suas memórias iniciais em terras da região de Bengala e em Dhaca, agora capital do Bangladesh, até à experiência como estudante na escola revolucionária em termos pedagógicos  para a altura de Santiniketan sob a influência das ideias do poeta e pensador Rabindranath (Nobel em 1913), passando pelas memórias de formação do Bangladesh e pela sua experiência como professor em Calcutá, as raízes indianas de Sen vão depois confrontar-se com a sua passagem pelo Trinity College de Cambridge e depois pela sua passagem pelo MIT e por Stanford nos EUA. As memórias fecham-se com o retorno à Índia para a Delhi School of Economics.

Estou particularmente curioso com a experiência no Trinity College de Cambridge onde Sen privou com gente como Dennis Robertson, Maurice Dobb e particularmente com Piero Sraffa, para não falar de outras personalidades como Luigi Pasinetti, Nicholas Kaldor, Joan Robinson e indiretamente com a obra de Gramsci. É um mundo fascinante e é possível compreender como é rico e complexo o contexto que ajuda a formar um dos economistas de mais ampla inspiração, desde cedo impressionado pelas fomes trágicas que ele estudou na sua região de origem e pela necessidade de encontrar uma explicação económica para tão trágicas ocorrências.

Uma comparação fascinante entre as dificuldades de afirmação de um génio em território estranho e o cosmopolitismo e sentido de viagem de um economista exemplar, tudo largamente ocorrido na primeira metade o século XX, que precedeu a minha geração. 

E se o tempo sobejar e a modorra não atrapalhar, ainda poderá surgir a oportunidade de mergulhar na biografia de um dos meus referentes na ação política, Jorge Semprún. É um livro de 2016, chama-se Ida y Vuelta – La vida de Jorge Semprún (Debate Editora), uma vida cheia fuga da Espanha franquista, passagem pela resistência francesa, deportação nazi para Buchenwald, passagem pelo Partido Comunista Espanhol e Ministro da Cultura no governo Espanhol no governo de Felipe González.

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