segunda-feira, 30 de agosto de 2021

UM ESTRANGEIRO CHAMADO PICASSO

 

(Era claramente a minha aposta de leitura para as férias de Seixas. Cerca de 700 páginas tem a obra de Annie Cohen-Solal da Fayard, a leitura em francês e por isso era necessário encontrar a ambiência certa para vencer o desafio. Não me enganei. É um livro fascinante pelas razões que constam deste post. Destaco sobretudo os elementos decisivos revelados pela autora para compreendermos os contextos da produção e da distribuição artística, no quadro de uma França que, claramente ultrapassada por outras culturas mais cosmopolitas à época demorou um tempo infinito a reconhecer o génio de Picasso. Mas também a sagacidade do próprio Picasso em dialogar com essas outras culturas e uma experiência notável de cocriação e emulação artísticas entre Picasso e Braque…)

A odisseia da instalação de Picasso em Paris no início do século XX, com diferentes fases até ao início da Primeira Guerra Mundial, é um exercício notável de reconstituição de diferentes arquivos, com destaque para o esforço sobre-humano do artista de se distanciar da cultura familiar ao mesmo tempo que iniciava a sua prodigiosa aventura de inovação artística, mesmo que o seu domínio do francês fosse péssimo, como o revelam aliás as suas cartas escritas num francês inenarrável. Desse período inicial ressalta sobretudo a espantosa capacidade de criação artística e de trabalho de Picasso, em condições de instalação indescritíveis pela sua austeridade e até indigência, com destaque para as suas instalações da Rue Ravignan, nº 13, que ficaram conhecidas pelo Bateau Lavoir. E tudo isso sob uma reserva de suspeição das autoridades francesas que o encararam durante largo tempo como um “estrangeiro” com as consequentes perspetivas de vigilância e suspeição que o nacionalismo xenófobo então dominante implicava, sempre à mercê do oficial mais zeloso que os seus próprios chefes.

Após várias tentativas, a instalação em Paris é concretizada mobilizando a ajuda de outros artistas da comunidade catalã já instalada em Montmartre.

A partir desta instalação, Annie Cohen-Solal coloca-nos perante um conjunto de personalidades que profundamente ligadas a outras culturas mais cosmopolitas do que a sociedade francesa do início do século, todos eles também “estrangeiros” como Picasso e que por essa razão vão compreender melhor e com ele interagir mais intensamente a revolução artística que Picasso vai protagonizar. O rol dessas personalidades é impressionante e cada qual a mais fascinante. Max Jacob (poeta, pintor, escritor, crítico), o poeta Guillaume Apollinaire, a influência de Manet e Cézanne, a rivalidade com Matisse, os colecionadores Leo e Gertrud Stein (o famoso retrato), o colecionador checo Vincenc Kramář, o galerista Daniel-Henry Kahnweiler, alemão que não combateu a 1ª Guerra mundial pela Alemanha e que mesmo assim no rescaldo do conflito viu arrestada todo seu stock em que pontificava a produção de Picasso, o galerista, artista e galerista Alfred Stieglitz que haveria de ser responsável pela divulgação da obra de Picasso nos EUA, os irmãos Dutilleul que andaram próximos de Amadeo Sousa Cardoso, os colegas Braque e Derain, ambos mobilizados para a guerra, a aproximação a Jean Cocteau e ao coreógrafo Diaghilev, o galerista e colecionador russo Chtchoukine.

Devo confessar que o período até 1916 que é também aquele em que o cubismo luta pela sua afirmação é aquele que na obra é mais fascinante, sobretudo pelo notável cruzamento e fertilização de culturas e tendências que se sobrepõem ao nacionalismo francês, incapaz de perceber o que fervilhava no mundo mais moderno.

Por isso, a obra de Annie Cohen-Solal é bem mais do que a reconstituição minuciosa da afirmação de Picasso como artista. Tenho-a lido como uma espécie de gigantesco painel que nos ajuda a compreender o génio da transformação artística até à 2ª Guerra Mundial e que nos lança na perplexidade de como num mundo com esta riqueza de criação artística foi possível fazer germinar os horrores de duas guerras devastadoras.

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