terça-feira, 31 de agosto de 2021

SOBRE A PERCEÇÃO DO CONGRESSO

 


(Não ficaria de bem comigo próprio, apesar do último dia de agosto nos ter brindado com um daqueles dias em que apetece ver a noite cair sobre a praia, dizem os locais que é típico da transição para alguma chuva, veremos, dedicar alguma reflexão ao Congresso do PS do último fim de semana. Para evitar futuras dúvidas e deceções, direi desde já que não se trata de refletir sobre o Congresso, mas sim sobre a perceção que a comunicação social disseminou sobre o evento, logo com todo o risco de enviesamento a que estamos sujeitos por essa via indireta…)

Reflexões sobre as perceções do Congresso e não sobre o Congresso e, diria eu, é inevitável que teria de ser assim. Confesso que não tenho pachorra para seguir eventos desta natureza pela televisão e, por maioria de razão, penitencio-me pela minha total incapacidade de assistir física e presencialmente a cerimónias do tipo, embora compreenda que a democracia tem os seus rituais, a militância partidária faz parte do processo e, por isso, terei de elogiar quem sacrifica um fim de semana da sua vida, provavelmente mais aborrecido do que o convívio com outros militantes. Mas nestas coisas de partidos e sobretudo dos seus rituais, a minha máxima de referência é a de Grouxo Marx, “Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”. Já fui sócio do SLB, desde tenra idade por força e influência de outros, mas, se a memória não me atraiçoa, com a maioridade desisti de tal façanha, embora sofra à distância quando a bola não entra ou quando a nossa defesa abre e fica escancarada. Não desdenho de interagir com forças à esquerda, sobretudo com o PS, mas tenho a convicção do que me dizia um antigo militante do PS e chefe de Gabinete de Fernando Gomes na Câmara do Porto: “Meu caro Dr. tem de compreender que se não pedir nada em troca a esta gente será sempre visto como uma ave rara e por isso não estranhe alguns comportamentos”. Sábias palavras, do Dr. Vasco Valente, de que perdi totalmente o rasto.

Mas a análise das perceções reveladas pela comunicação social é coisa que me interessa. A minha sensação é estarmos perante uma onda de baratinhas tontas, que não sabem o que escrever nesta época estival, não tão silly como se apregoa. As contradições multiplicam-se até à exaustão. Senão vejamos.

Quase todos os jornalistas dizem que os partidos estão esgotados na sua comunicação com militantes e população eleitora em geral (sobretudo com a que não vota), que os congressos são já letra morta e coisa do passado, que se deve falar para fora e não para dentro. Depois, quando estas almas comentam o congresso do PS esquecem todo esse diagnóstico e comentam-no como se ele pudesse contrariar esses vícios estruturais da comunicação política. Nesse aspeto, Costa tem razão quando riposta que os congressos no PS não são feitos para levar ao rubro a disputa eleitoral interna, essa faz-se em eleições primárias.

Esperariam, assim, as boas almas que cobriram o congresso que houvesse chispa e lume em discursos arrebatados, sobretudo a partir do momento em que caíram no engodo da organização que reuniu os quatro putativos candidatos à sucessão, ladeando o atual primeiro-Ministro. Engodo que foi prolongado com a “canonização partidária” de Marta Temido, que gostaria que fosse reconhecida e elogiada noutro contexto, mas que o PS escolheu desta maneira, algo canhestra, mas que mesmo assim não impede o meu reconhecimento e o mérito de um partido em acolher como militante alguém que viveu a experiência talvez mais desgastante da história ministerial em Portugal. Bravo Marta e paciência que não te falte para enfrentar agora outros desafios, o da conflitualidade interna própria de um Partido.

Aliás, a minha interpretação da sucessão de Costa é indissociável do papel que lhe atribuo na vida política portuguesa, após a crise das dívidas soberanas, não ignorando o exercício notável de gestão da “débacle” que a prisão de Sócrates e a sua culpabilização pela opinião pública poderiam ter gerado para o PS. Chapeau, com chapelada só ao alcance dos eleitos.

Só o percurso político de Costa, com todo o contexto da sua envolvência pessoa e familiar, incluindo a filiação política dos seus pais, explica a sua capacidade de demonstrar à opinião pública e ao seu próprio partido que era possível ultrapassar o até aí tabu da cooperação política parlamentar para a governação à esquerda. A história haverá de julgar se tenho ou não razão, mas continuo firme na minha convicção imperturbável de que a geringonça foi a melhor solução política de governação que era possível ensaiar naquele contexto. E não o foi apenas por questões de estabilidade política que Marcelo tanto preza e que o ajuda a engolir os sapos de ocasião. Foi-o também em meu entender pelos tons de recuperação inclusiva que permitiu, não ignorando toda a série de sobressaltos de negociação, de birras e recuos, de excessos despesistas. Mas não recuperávamos de uma recessão qualquer.

Tudo isto era impossível sem a presença de António Costa, por mais que nos possa irritar o seu estilo, a sua tentação de pintar os horizontes à sua maneira e até a sua complacência com dimensões do funcionamento partidário que gostaríamos de ver erradicados de um partido como o PS.

Ora, na minha interpretação, é errado pensar a escolha do sucessor de Costa partindo do princípio de que as soluções de geringonça à esquerda serão o pão nosso de cada dia nos tempos futuros. Para mim, a sucessão política no PS, acaso Costa queira voar para outras paragens, obriga a alguém que seja capaz de entender que haverá contextos históricos em que a negociação à esquerda é vital, mas que não hipoteque o papel de charneira política que o PS sempre representará, por isso que possa entender outros contextos que exijam outro rumo de parcerias.

O que me preocupa em toda esta questão é a completa ausência de produção de novo pensamento político para preparar o PS para esses novos desafios, que estão muito para além do jogo das cadeiras que ladearão Costa para o futuro. Até porque há linhas de grande leveza em algumas opções que o PS terá de tomar nos próximos tempos. O partido não tem discurso e pensamento para as empresas e isso é para mim uma grande lacuna. Mas a procura desse discurso e pensamento tem domínios de concretização de grande complexidade, até porque de onde poderia vir algo de novo nessa matéria, da direita esclarecida, a miséria de pensamento é franciscana. A dimensão social do partido não me preocupa de todo e considero uma total alarvidade de comentário concluir que as medidas sociais anunciadas no congresso são para encantar PCP e Bloco na negociação do próximo orçamento. E a par do pensamento para o lugar das empresas há ainda uma outra questão cuja amplitude política tarda a ser compreendida em Portugal: decidir que modelo de atração e acolhimento de população imigrada podemos construir ou aguardar alegremente pela nossa extinção demográfica.

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