sexta-feira, 27 de agosto de 2021

O RUI OLIVEIRA DEIXOU-NOS

(Morreu hoje o Engenheiro Rui Oliveira, uma personalidade pouco conhecida das primeiras páginas, mas crucial para a minha formação cívica e política e com o qual mantive uma longa e frutuosa interação de ideias e de amizade, pelo menos até ao início dos seus problemas de saúde que viveu como um estoico que eraApoiado nos últimos tempos pelo Amigo Leonardo Costa, professor da Universidade Católica no Porto e filho da sua mulher e companheira, a saudosa Arquiteta Fernanda Seixas, o Rui viveu os seus últimos anos com aquela dignidade ímpar. É com saudade que o vejo partir.)

 

Na introspeção de memória possível, creio que a primeira vez que ouvi o Rui Oliveira falar foi numa reunião antes de 1974 da Cooperativa, salvo erro, Confronto que tinha uma sala na Rua de 31 de janeiro, bem lá em cima junto à Praça da Batalha. Não consigo recordar as razões que me levaram a essa reunião.

 

Depois desse momento bem lá no fundo da memória reconstruível, foram as suas relações de família com o Arquiteto Manuel Fernandes de Sá e a sua então CEAPE, com a qual cheguei a colaborar, que me conduziram ao seu contacto e que haveriam de levar à criação de uma associação tertúlia A RESULTANTE (que funcionava por cedência numa sala da agora Editora Afrontamento do meu colega e Amigo José Manuel Sousa Ribeiro), juntamente com personalidades como o Professor Nuno Grande, o Arquiteto Nuno Guedes de Oliveira, ambos já desaparecidos, o Engenheiro Manuel Miranda e relações colaterais com o Arquiteto Otávio Lixa Filgueiras e, por via do Nuno Grande, algumas reuniões com o Professor Corino de Andrade. 

 

O tema do desenvolvimento e do paradigma da participação popular eram essencialmente o motivo da aproximação entre todas aquelas pessoas e o grande envolvimento do Rui Oliveira nas políticas de habitação (cooperativas, associações de moradores e outras fórmulas associativas) trazia para o grupo uma intuição política de terreno notável, reforçada por uma cultura política e histórica que a todos nos encantava e com a qual interagíamos motivados e de bom grado. 

 

Com experiência política de passagem pelo PCP, do qual se afastou quando a ortodoxia e a repressão soviética começaram a vir ao de cima, o Rui sempre manteve através do paradigma associativo e cooperativo uma relação de proximidade crítica com a área socialista, sem nunca se confundir com a sua dimensão de aparelho, sendo próximo de personalidades como por exemplo o Alberto Martins. Foi ele também o entusiasta criador e animador de uma outra associação a APRIL, nunca deixando de investir nas questões da participação e da consolidação do processo de descentralização.

 

Esteve próximo de Maria Lurdes Pintassilgo e recordo-me de na sua companhia a ter visitado, creio que numas instalações do Graal perto do Campo de Santana em Lisboa, para lhe fazer chegar alguns documentos de reflexão política que elaboráramos na Resultante.

 

Vou ter saudade da sua intuição política e sobretudo das conversas em torno de um conceito que forjámos na nossa tertúlia, o de margens da transformação possível. O Rui era um leitor atento de toda a reflexão que a resistência polaca forjara a partir de Gdansk, com relevo para o pensamento de Adam Michnik, que foi depois editor-chefe  da  Gazeta Wyborcza, jornalista, historiador, cofundador do Comité de Defesa dos Trabalhadores e assessor de Lech Walesa. As margens da transformação possível só podem ser obviamente testadas em contextos de duros constrangimentos políticos como eram os da resistência polaca. Esse conceito nunca mais me abandonou e tem hoje uma ampla aplicação em contextos de transição que as estratégias de mudança sempre implicam. A mudança orienta-se por um futuro desejável, mas para ser atingido exige a transformação da situação de partida e nem sempre é possível fazer uma revolução, há que transformar nos interstícios da sociedade e da economia.

 

Hoje, no velório do fim de tarde pela Foz (Igreja de S. João da Foz), pude rever o Manuel Fernandes de Sá, o Pedro Guedes de Oliveira, o Luís Tavares, conhecer a neta do Rui, que é o seu elemento de família mais próxima, todos acolhidos pela boa alma e dedicação do Leonardo. 

 

É mais uma página da Vida que é dobrada. Um estoico de suprema dignidade nessa Vida deixou-nos. Descanse em paz.

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