A maioria das vezes estas coisas passam-nos ao lado, quer porque ocorrem largamente sob o natural signo do secretismo quer porque a opinião pública tende a focar-se em fait-divers e a desvalorizar (ou a de todo não ver ou não querer ver) o essencial dos factos relevantes que se lhe apresentam e do que pode estar para além deles. Não é o caso desta vez, muito por via da qualidade jornalística de alguns dos grandes órgãos internacionais de comunicação social, como o “Financial Times” (que me alertou para o assunto por via de uma chamada do mesmo a manchete principal) e vários outros.
De que se trata, afinal? “Tão-só” de uma parceria para a área do Indo-Pacífico no domínio da segurança, juntando a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos (daí o acrónimo AUKUS, retendo as iniciais dos três países) e anunciada há dois dias atrás com alguma pompa pública pelos respetivos poderes executivos máximos (Joe Biden, Boris Johnson e Scott Morrison). Declarada como militarmente defensiva (redução dos riscos de guerra com a China, designadamente perante alguma agressividade desta na zona, em relação a Taiwan mas também em matéria de investimentos infraestruturais nas Ilhas do Pacífico ou de sanções comerciais contra a Austrália, de que é o primeiro parceiro de trocas), tecnologicamente avançada e estratégica (adicionando a Austrália aos seis países do mundo — a saber: EUA, Reino Unido, França, China, Índia e Rússia — capazes de operarem submarinos nuclear-powered e assim substantivamente detentores de sovereign capability) e criadora de centenas de empregos altamente qualificados, a dita parceria é todavia encarada pela maioria dos analistas como visando centralmente a China, no âmbito de um novo posicionamento da política externa americana em que esta parece tornada no “inimigo principal” (o que também surge comprovado pela decisão de partilha tecnológica por parte dos EUA, inédita no último meio século com exceção de alguns aspetos bem determinados no tocante ao Reino Unido). Acresce que a reação chinesa igualmente parece confirmar essa leitura ao vir denunciar a intensificação da “corrida aos armamentos”, o comprometimento dos esforços internacionais quanto à não proliferação nuclear e a extrema “irresponsabilidade” do ato por minar gravemente a paz e a estabilidade regionais.
Por fim, e como também frequentemente acontece neste tipo de processos, há um enganado principal em tudo isto e esse é a França, que tinha um acordo fechado com a Austrália (um contrat du siècle para a indústria francesa de defesa, após negociações duras e cheias de vicissitudes) segundo o qual venderia doze submarinos de ataque e respetiva manutenção por 35 mil milhões de euros em cinquenta anos. E que já veio ameaçar um litígio judicial (que será seguramente longo e complexo e que passará necessariamente ao lado dos tempos mais céleres dos factos consumados da geopolítica), não sem acusar severamente os australianos de traição e os americanos de falta de coerência.
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