(Ver jogar a seleção de Fernando Santos como hoje jogou na primeira parte causa tanta azia como aquela que ressalta do ar amargurado e infeliz do selecionador, que ele transporta como Cristo aguentava a sua cruz. É cada vez mais evidente o sério problema de desmame da influência de Ronaldo no funcionamento do coletivo. Trata-se de um círculo vicioso que dá dó reconhecer. Quanto mais o resultado do jogo fica dependente da inspiração do craque mais sério fica o grande lio que será preparar uma seleção para jogar sem o dito. Como hoje ficou mais uma vez demonstrado…)
Se quisermos ser rigorosos sem entrar no prazer sádico de dizer mal das nossas coisas, temos de convir que, há já um rol imenso de jogos, a seleção não joga o suficiente para justificar a compra de um bilhete, num ritmo exasperante e segundo um modelo de demonstração em que os jogadores parecem esquecer o que fazem nos seus clubes. Eu sei que nos tempos de alucinação do futebol de hoje, a preparação dos jogos de uma seleção deve fazer-se mais por vídeo e IPad do que em treinos capazes de preparar mecanismos de funcionamento coletivo. Mas o que ressalta cá para fora é a imagem de um coletivo que se arrasta, sem pinga de entusiasmo e há que reconhecer que se os jogadores olharem para a linha lateral e para as imediações do banco o ar amargurado do Fernando Santos não deve motivar ninguém. E o ar meio alucinado, meio despenteado, do selecionador adjunto Ilídio Vale também não deve acrescentar nada de relevante à motivação. Não imagino que raio de discurso de motivação de jogadores o nosso selecionador será capaz de fazer, mas seja pela crença de que Santos tem alguma proteção divina, seja pela fezada de que o Ronaldo lá encontrará solução para o problema, a seleção tem sido nos últimos tempos um coletivo passivo e expectante esperando que um golpe de mágica ou de ajuda divina resolva o problema.
O jogo de hoje no Estádio do Algarve com a República da Irlanda foi exemplar do ponto de vista da demonstração do síndrome do desmame de Ronaldo que a seleção deveria (e não está) a preparar. Tudo começa numa grande penalidade mais do que discutível e que para cuja marcação se assistiu à evidência de que o recorde de Ronaldo se sobrepôs à necessidade de desbloquear um jogo que tudo indicava seria difícil. Os nervos do craque não são assim tão de aço como se diz e um jovem guarda-redes de 19 anos, que joga no modesto Portmouth, foi suficiente para se opor ao desejo de marcar a história do futebol. Tudo se complicou a partir daí, sobretudo porque faltou clarividência e organização e nem o regresso dos balneários parecia resolver o problema.
Santos fez algumas mudanças. A entrada de André Silva é sempre ensaiada mas percebe-se que esse modelo de jogo com o jovem do Leipzig e Ronaldo no centro do ataque não está devidamente treinado e foi preciso acionar a entrada de Nuno Mendes (uma prestação desastrada), João Mário e do patinho feio Gonçalo Guedes (que curiosamente entra sempre bem na seleção, vá lá saber-se porquê) para urdir a oportunidade de dois saltos do outro mundo, recorde quebrado e dois golpes de cabeça mortais para o jovem guardião irlandês.
E lá se cumpriu uma vez mais a saga dos últimos tempos. Ronaldo resolveu, com assistência dos entrados Gonçalo Guedes (numa ida brilhante à linha como um extremo dos velhos tempos) e João Mário e com essa proeza que resolveu o negócio e sossegou as almas adensou-se o problema do desmame, começar a jogar a pensar que o craque um dia deixará de jogar.
E já agora não é só de desmame de seleção que temos de tratar, é também de desmame de heróis populares, sem ou com marquise.
Sem comentários:
Enviar um comentário