sexta-feira, 17 de setembro de 2021

METÁFORAS POLÍTICAS

 

(O deslassar das condições políticas da governação em algumas democracias ocidentais, com a lenta erosão do bipartidarismo político alternando a sua passagem pelo poder e a emergência de governos minoritários assentes em frágeis, instáveis e por vezes bizarras coligações ou maiorias parlamentares constitui uma evidência recente. Esse fenómeno não pode ser dissociado da evolução das condições sociais em que essa governação se insere, de que o conceito de sociedade ou modernidade líquida de Zygmunt Bauman é talvez a abordagem hoje mais conhecida e divulgada. Outra via para lá chegar é a do uso de metáforas políticas para descrever esse estado de coisas).

Por repetidas vezes mobilizo para este blogue o espírito bizarramente conservador e contundente do cientista político galego Xosé Luís Barreiro-Rivas, que escreve regularmente na Voz de Galicia e que sigo com atenção, sobretudo pela contextualização que posso fazer dos seus escritos, conhecendo a sua formação, o seu percurso político na Galiza e sobretudo a robustez da sua formação intelectual, com o contributo inestimável da sua formação religiosa.

Barreiro Rivas é um observador implacável das condições típicas de governação que se vivem em Espanha desde há algum tempo com a erosão do bipartidarismo PSOE versus PP e por isso vale a pena segui-lo para ir construindo uma visão comparada do fenómeno da fragilização da atividade governativa por toda a Europa. Não podemos como é óbvio “fazer teoria” a partir do caso espanhol, mas não tenho dúvidas de que ele é um dos casos em que o fenómeno está mais avançado. A isso não é alheio o facto das autonomias regionais, históricas e não históricas, introduzir na formação de maiorias políticas grandes especificidades, complexificando até ao limite as condições de negociação dessas maiorias de governo e parlamentares.

A peça de Barreiro Rivas que hoje vos trago é importante porque aplica com perfeição a utilização de metáforas para descrever o deslassar político a que me referi anteriormente. O que é curioso é que a metáfora construída é apresentada como material pedagógico de ensino do conceito de Sociedade Líquida de Bauman.

Eis a citação (link aqui):

A imagem que mais utilizei para iniciar os meus alunos neste fenómeno foi a de Gregory Peck que, conduzindo um automóvel dos anos 50 por uma reta sem fim, não parava de mover o volante para um e outro lado, à procura da regularidade de direção que a mecânica de então não garantia e que os automóveis de hoje oferecem como uma necessidade de segurança e de conforto que os viajantes do passado não podiam intuir. Eu creio que Sánchez conduz o Governo como Gregory Peck conduzia as banheiras americanas, sem parar de mover a direção e sem que nada o pudesse adivinhar se estamos a viajar por uma planície de horizontes desafogados ou por uma estrada de montanha cheia de abismos e rochas em desprendimento. E isso demonstra que a liquidez que caracteriza este outono é preocupante e que perdida a segurança proporcionada pelo bipartidarismo imperfeito, as maiorias e os parlamentos governáveis que tivemos entre 1977 e 2015, os governos atuais só nos podem guiar através de movimentos bruscos, corrigindo continuamente a sua trajetória e fazendo com que os passageiros vivam a sua viagem como se de uma incerta e perigosa aventura se tratasse.”

A questão que fica implícita nesta metáfora e que me interessa mais do que a crítica ao governo de Sánchez é a de saber se a consequência do que Bauman chama a “modernidade líquida” é termos inevitavelmente a governação a tornar-se ela também “líquida”, no sentido que a metáfora de Barreiro Rivas lhe atribui – o sobressalto permanente da governação como quem alinha a todo o momento uma direção desgovernada. De facto, se a fluidez, o efémero e o fugaz são na perspetiva de Bauman os elementos de reprodução da modernidade líquida, não parece ainda estudada com a profundidade necessária a sua implicação em termos de formação de modalidades de “governação líquida”. E a questão é decisiva, pois se o capitalismo enfrenta o desafio de revolucionar a linearidade dos processos produtivos e o modelo de consumo que está com eles associado, introduzindo o modelo de economia circular, pode naturalmente questionar-se se os representantes da governação líquida serão algum dia capazes de suscitar essa mudança de paradigma.

Voltando à metáfora de Gregory Peck, às voltas com a sua direção, sabemos hoje que as “banheiras americanas” existem e constituem a evidência de que como na economia americana a mudança de paradigma em contexto de gasolina barata constituirá um desafio de infinitas proporções. A tecnologia das direções faria hoje com que Gregory Peck não tivesse de guiar daquela maneira. Assim, com esse outro contexto tecnológico, a variável de instabilidade fundamental passa a ser o contexto em que decorre a governação, exigindo de quem conduz a perícia necessária. E de repente o elemento fundamental passam a ser as características e a personalidade de quem vai ao volante. E curiosamente aí a personalidade de Gregory Peck não é de somenos importância. Ou seja, quando em democracia se elege alguém, sempre é melhor eleger um Gregory Peck, sóbrio como ele sabia ser, do que qualquer outro personagem alucinado e imprevisível que, apesar da revolução tecnológica nas direções assistidas, tenderá sempre a guiar aos repelões e às guinadas.

Recordo-me de que numa das raras vezes em que privei, por intermédio do saudoso Professor Nuno Grande, com o Grande Professor Corino de Andrade, o ouvi dizer que analisar a forma como as pessoas guiam os seus automóveis representava para ele um raro momento de avaliação de comportamento e personalidade. Pura sabedoria.

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