quarta-feira, 8 de setembro de 2021

REGRESSO AO ESCRITÓRIO

 

(O Pai e Mãe da ideia das vacinas da Pfizer/Biontech e Moderna a serem vacinados)

(Por esta altura muitas pessoas como eu estão confrontadas com decisões sejam voluntárias em termos de escolha pessoal, sejam coagidas por orientações ou deliberações em empresas e organizações que trabalham. No primeiro caso, as escolhas individuais pesam sobretudo condições de vida e de trabalho em casa ou no local de trabalho, ao passo que no segundo é essencialmente o critério das vantagens ou inconvenientes para a organização que pesa e faz regra. A reconsideração do modelo de trabalho, presencial, à distância ou combinações entre si segundo moldes muito diversos não teria que ser uma questão de escolhas individuais ou de organização. Deveria ser o resultado de escolhas individuais e de organização, combinadas, articuladas, discutidas, negociadas. Não tenho grande otimismo quanto à incidência desta modalidade “mais civilizada” de decisão.)

Nesta matéria considero-me um privilegiado. Não tenho pejo ou pudor em reconhecê-lo. Em primeiro lugar, a profissão da consultadoria presta-se otimamente a condições de trabalho à distância. Não apenas no plano individual da relação do consultor com a sua organização. O mesmo acontece com o domínio da relação entre a empresa e os seus clientes. Não fiz o cálculo, mas é gigantesco o número de horas poupadas em reuniões desnecessárias, enfadonhas, mal preparadas por quem as marcou, muitas vezes de desproporcionada curta duração face à duração da viagem a Lisboa, no Alfa Pendular ou em automóvel. E de pouca eficiência para os projetos, porque muitas vezes pela força das circunstâncias dos desencontros entre os horários das reuniões e dos meios de transporte em vez de uma imputação ao projeto de duas horas no máximo a imputação acaba por ser de um dia de trabalho. Em segundo lugar, porque as minhas condições de trabalho em casa são excelentes, a biblioteca física caseira ajuda e os recursos bibliográficos à distância não nos deixam ficar mal. Nunca senti nestas condições de confinamento o trabalho e a vida em casa sobreporem-se, diga-se também que mesmo antes da pandemia trabalhava horas a fio em casa fora dos horários normais num país minimamente civilizado e que preza as condições de vida. Em terceiro lugar, porque tenho um excelente ambiente de trabalho no escritório, mesmo que subordinado à divisão física entre as unidades do Porto e de Lisboa e o dom da ubiquidade é uma coisa que os consultores ainda não conseguem evidenciar.

Pode então perguntar-se porquê então este regresso ao escritório após férias, depois do ensaio de regresso antes das mesmas, ainda que em horário partilhado com dias no escritório e dias de trabalho em casa? Nesta matéria, as condições de decisão individual, ainda que justificadas e com campo próprio de verificação, dependem da relação do consultor com a organização. Por mais pequenos que sejam os universos em que inserimos o nosso trabalho, e neste caso estamos a falar de uma organização com vinte e picos colaboradores divididos por dois escritórios à distância de uma viagem de comboio de cerca de três horas, o desempenho de cada um depende também da interação com o coletivo. A socialização da experiência e da reflexividade em função da prática desenvolvida tem aspetos coletivos e de interação interpessoal nesse âmbito que são indesmentíveis. Chamamos a isso conhecimento tácito adquirido e essa aquisição não é um processo estritamente individual.

O problema é que a multiplicidade de decisões individuais e de organização que estão a ser tomadas por estes dias está a ser concretizada sem grande incorporação de elementos de investigação e avaliação do trabalho on line, o chamado teletrabalho, e também sem conhecimento sobre as consequências para as organizações da ausência, ou da minimização, do trabalho presencial com a totalidade dos coletivos em funcionamento.

Há inúmeros aspetos subtis que influenciam a equação e que não estão a ser considerados por ausência de evidência robusta e conclusiva. É por exemplo o caso da influência de condições menos rígidas na organização do tempo de trabalho em termos de desempenho individual (produtividade hora, por exemplo), mas também em aspetos que para alguns domínios da consultadoria são essenciais, como os da criatividade.

Por estes dias, tem circulado em alguns meios de opinião internacional, a história do encontro numa máquina fotocopiadora dos cientistas Professora Katalin Karicó e Dr. Drew Weissman, a primeira ligada à vacina da Pfizer/Biontech, o segundo ligado à da Moderna, que se encontraram por acaso nessas condições em 1997 e desde então iniciaram o processo colaborativo que haveria de conduzir à técnica do mensageiro nas vacinas contra o SARS-COV2.

Este exemplo, hoje recordado, porque em 1997 ninguém lhe terá dado importância, tem sido glosado até à exaustão pelos que sustentam que o trabalho à distância elimina a aprendizagem espontânea, a tal socialização tácita, e por essa via a criatividade. Como sempre, o extremar de posições não conduz à estratégia de investigação certa. Pela minha parte, posso dizer-vos que não me senti menos criativo por trabalhar em casa em boas condições e até poderei dizer-vos que ver-me livre de uma muito baixa intensidade de passagem pelo nó de Francos, me pôs fresco como uma alface e com mais energia para o desempenho criativo. Mas será que o coletivo em geometria variável que trabalha mais diretamente comigo pode dizer o mesmo? E não estou objetivamente a ser pretensioso ao ponto de ignorar que o meu desempenho criativo depende também da referida interação? O que parece evidente é que os consultores mais jovens, em trajetórias de aprendizagem e robustez de experiência terão sido prejudicados.

E há aspetos ainda menos estudados. Porque se o desempenho interpessoal afeta claramente a criatividade, esses resultados parecem ser mais claros quando essa relação ultrapassa a nossa esfera normal de relacionamentos. Nesta última perspetiva, o confinamento ter-nos-á afetado não tanto pela interrupção da interação nos nossos pequenos coletivos, mas fundamentalmente pelo impacto que teve nas relações inter-pessoais em geral. E para perturbar esta discussão costumava recomendar aos meus alunos de Economia da Inovação e do Conhecimento a leitura do artigo seminal de Mark Granovetter, que estabelece a subtil distinção entre relações de muita proximidade e forte densidade de interações (o nosso grupo de eleição de amigos ou colegas) e relações com gentes com a qual temos ligações mais débeis ou esporádicas. Pois o argumento de Gravonetter é que no primeiro caso predomina a circulação de informação redundante, enquanto que no segundo a probabilidade de aparecerem ideias novas é mais elevada. O caso da fotocopiadora e do encontro entre Karikó e Weissman é claramente, a meu ver, uma situação de “weak ties” e, por isso, Karikó viu facilitado com esse encontro o seu problema de financiamento para as ideias que prosseguia e que persistentemente defendeu e trabalhou. Claro que os especialistas em conhecimento simbólico, determinante para as questões culturais, me dirão que o primeiro caso é mais fértil em conhecimento “gossip” (rumor) e esse conhecimento favorece a produção cultural.

Cá por mim posso dizer-vos que gosto dos nevoeiros matinais de Matosinhos, aquele odor inconfundível a maresia que, na minha infância e na casa dos meus avós paternos, surgia misturado com o das fábricas de conservas. Gosto também de tomar o café do meio da manhã na mais simples esplanada perto do escritório. E tal como em muitas outras situações, embora largamente conhecedor de bibliografia e literatura relevante, não foi com muitos papers à mistura e literatura que baste que decidi regressar ao escritório.

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