quinta-feira, 9 de setembro de 2021

PARA LÁ DO CONSENSO DE WASHINGTON

(Já por repetidas vezes neste blogue fiz referência ao esgotamento da cartilha que orientou sobretudo nos anos 80 e grande parte dos 90 a organização da economia mundial, sobretudo na sua sempre controversa relação entre os mundos mais e menos desenvolvido. Os sérios problemas de governação que a pandemia veio simplesmente intensificar constituem a melhor evidência de que esse Consenso, largamente pautado pela confiança acrítica e desproporcionada nas forças do mercado, o que muita gente designa de neoliberalismo económico, está esgotado e em nada ajuda a consertar o problema.)

Sem querer entrar profundamente nessa questão, sobretudo porque a considero arrumada do ponto de vista de pensamento, pode dizer-se que o Consenso se esgotou devido essencialmente a dois vícios: o da hipervalorização na globalização financeira (e não foi preciso chegar a 2008 para se compreender que era um erro temerário) e o da presunção de que o mundo era totalmente plano, ou seja que bastaria facilitar o acesso dos países à livre força do mercado que o comércio internacional e a livre disseminação do conhecimento por ele veiculado faria o resto-

Mas talvez a falência maior do Consenso fosse a sua trágica influência nos processos de ajustamento estrutural e de condicionalidade de apoio dos financiamentos respetivos que o FMI e o Banco Mundial por vias complementares promoveram junto dos países pobres e menos desenvolvidos que necessitaram de ajuda financeira internacional. O principal indicador dessa falência foi a incapacidade desses programas de ajustamento reduzirem o nível de pobreza absoluta desses países, tendendo antes pelo contrário a reforçá-la numa larga parte das experiências de ajustamento que tiveram o Consenso por cartilha.

Ninguém estranhou por isso que sobretudo o FMI se visse obrigado nesses programas de ajustamento estrutural a introduzir objetivos específicos de redução da pobreza e não apenas critérios de estabilização macroeconómica e financeira e de saneamento de contas públicas. Muitos desses programas de ajustamento de primeira geração fizeram com que os doentes morressem da cura, com terapias de choque que, para castigar algumas elites corruptas e totalmente desligadas das suas populações, acabaram por sacrificar essas populações a longos períodos de miséria económica e, obviamente, social.

Embora não tenha seguido nos últimos tempos a evolução desses programas de ajustamento estrutural dirigidos a economias menos desenvolvidas já com a corda na garganta (por exemplo, com serviços de dívida que engolem as promissoras evoluções das suas exportações), não custa acreditar que essa evolução tem sido muito lenta.

Embora o problema da má governação e da corrupção em regra associada não possa ser esquecido, não sendo de aceitar os discursos de desculpabilização plena das elites dirigentes que vêm nas instituições financeiras internacionais e nos doadores mundiais as razões de todos os males, a verdade é que para colocar a redução da pobreza no centro dos programas isso transforma radicalmente os programas de ajustamento estrutural. Não custa imaginar que a transformação será lenta. E não podemos esquecer, do mesmo modo, as virulentas e contundentes críticas aos mecanismos da ajuda pública internacional de que a fabulosa obra de William Easterly, THE TYRANNY OF EXPERTS, Basic Books, 2013 (de que o subtítulo nos conduz ao caminho certo, Economists, Dictators and the Forgotten Rights of the Poor”) deveria ser o livro de cabeceira.

O problema é que essa transformação teve de ser operada sem um enquadramento coerente em termos de filosofia da organização da economia mundial. Sabemos apenas que THE WORLD IS NOT FLAT e que INEQUALITY MATTERS (cada vez mais) e ainda que a globalização se estatelou ao comprido. O sabemos já não é pouco.

Nos tempos que correm, com a desestruturação das cadeias de valor à escala mundial e os problemas de que nos fala o historiador económico americano Adam Tooze (referenciado num dos meus últimos posts, link aqui)), a economia mundial talvez corra um risco maior com os riscos de destruição caótica da globalização (agravada com o populismo económico mais assanhado, iliberal à direita e também à esquerda) do que com o esgotamento do Consenso de Washington e a ausência de uma alternativa.

E temos mais um problema que ainda não vi substancialmente tratado e que este modesto vosso Amigo se atreve a colocar. É que integrando as restantes ameaças que pesam sobre a vida humana (designadamente a questão climática e a erosão da biodiversidade) o problema já não está na descoberta de um Consenso de Washington 2, ou seja de dimensão essencialmente económica.

Como tenho vindo a insistir e porque sou fundamentalmente contra a ilusão do decrescimento económico na cena global (os ricos que queiram fazer dieta ou longos períodos de jejum diário podem obviamente fazê-lo), um novo Consenso seja lá de que terra for já não pode ser estritamente económico. O novo Consenso tem de integrar um racional climático e ambiental e obviamente de consumo sustentável e mundialmente equilibrado, só nesse âmbito tem sentido reequacionar a ordem económica internacional e as regras do comércio internacional. O desafio é duplo: impedir a desagregação caótica da globalização e construir o novo Consenso, não como batalhas separadas, ambiental e económico, mas como algo cuja viabilidade e exequibilidade só nesse plano podem ser testadas.

Até lá teremos de estar atentos aos rumos e resultados de grandes iniciativas originárias do mundo desenvolvido dirigidas ao mundo mais pobre. É o caso do Compacto com África (link aqui), o continente mais problemático, gerado a partir do G-20, com liderança da Alemanha, iniciado em 2017. África é inequivocamente o caso do continente menos integrado na economia mundial, o que mostra por si só a idiotice de considerar que a solução está em menos integração. O Compacto com África pode ser assim considerada como um caso de testar um modelo mais progressivo de integração com foco na redução da pobreza, na qualificação e no empoderamento das populações.

Mas pensemos bem: terá sentido essa experimentação sem uma grande iniciativa de ajuda pública incondicional internacional à vacinação em África? Ou estaremos no domínio mais hipócrita e estratosférico?

 

Sem comentários:

Enviar um comentário