(Patrick Leger para o NYT)
(Depois de uma visita de fim de semana ao afeto dos meus netos de Lisboa, escrevo praticamente em cima do encerramento das urnas na Alemanha, por conseguinte sem qualquer perspetiva de resultados. Mas esse é provavelmente o contexto ideal para escrever umas notas sobre a saída de Ângela Merkel, com aquela interrogação inevitável de não saber o futuro político da ex-Chanceler).
A sensação que tenho ao escrever algumas notas sobre o significado da personagem e da sua saída da cena política alemã, pelo menos da mais imediata, tem muito de paradoxal. E vou tentar explicar esta sensação estranha.
Quem sou eu, é um facto, para emitir aqui algum juízo condenatório ou menos favorável da Chanceler alemã. Ângela Merkel fica para sempre ligada a momentos difíceis do projeto Europeu e muitos de nós se interrogam sobre o que poderiam ter sido os rumos de tais acontecimentos sem a presença de Merkel. Isto não significa que a Chanceler tenha sempre conduzido o barco como o desejaríamos que fizesse, num equilíbrio altamente desafiador de olhar para dentro e segurar os cavalos nesse plano e velar em simultâneo pela defesa do projeto Europeu, evitando que ele ruísse ou que desse origem a um puzzle balcânico entre as suas principais forças. Pode mesmo discutir-se se esse equilíbrio é viável e se a contenção dos cavalos no plano interno não terá sido a melhor forma de viabilizar algumas decisões no plano europeu. Apesar de ter visto a extrema-direita AfD entrar no Bundestag, a verdade é que a força eleitoral extremista foi contida e espera-se que os resultados de hoje confirmem esse estancamento. No plano da União, Merkel demonstrou alguma rigidez em entender o problema da crise das dívidas soberanas na Europa do sul e não se livra do pensamento cínico dos que afirmam que Merkel só o compreendeu depois de por a salvo os bancos alemães envolvidos nesse sobreendividamento.
Mas talvez a sua decisão mais corajosa, sobretudo pelo que ela representou do ponto de vista de coragem política interna e assomo de dignidade no plano europeu tenha sido a de dar o peito às balas abrindo as fronteiras alemãs aos refugiados sírios, numa escala face à qual todas as outras liberalidades de outros países são insignificantes.
Mas se é esta a minha avaliação então qual a razão para o referido pensamento paradoxal?
Devo confessar que um longo artigo de opinião no New York Times internacional deste fim de semana, assinado pela jornalista Anna Sauerbrey (link aqui) teve o condão de explicitar com rigor de evidência o tal sentimento de paradoxo que tinha intuído, não com a credibilidade da jornalista americana.
A ideia central que tinha já intuído e que agora o artigo explicita em toda a extensão de implicações é que o papel central desempenhado por Merkel nos destinos da União Europeia acontece com um conjunto relativamente elevado de pontos que Merkel deixa enrolados e por desatar.
Vejamos, por exemplo, o da sua sucessão política na CDU. Falava-se hoje que o candidato da CDU, Armin Laschet estaria em frança recuperação nas sondagens e a verdade é que uma sondagem à boca das urnas lhe dá um número de mandatos superior ao do SPD, com a mesma percentagem de votação popular (25%). Quer isto significar que, qualquer que seja o resultado final, a sucessão de Merkel está em banho maria e muito provavelmente Laschet vai ser mais um nome numa longa transição.
Depois se é verdade que a decisão de Merkel quanto à imigração foi notável, não podemos ignorar que ela foi acompanhada de um bizarro acordo com a Turquia de Erdogan, cuja sustentabilidade parece hoje comprometida, não só porque o parceiro não é de confiança, mas também pelo facto da dimensão do fenómeno ser excessiva para o poderio do tampão turco. Aliás, a ameaça permanente de Erdogan usar o acordo e a sua interrupção como arma de arremesso é uma bomba de relógio permanente.
Para além disso, em matéria de geopolítica externa, Merkel deixa dois volumosos rabos de palha, que resultam em grande medida do próprio posicionamento alemão. A sua relação com a Rússia e com a China, dada a dimensão da economia alemã, introduzem no simulacro de política externa europeia uma infinidade de contradições que devem por a cabeça em água ao pobre do Borrell. O problema do pipeline do gás natural Nord Stream 2 e a forte dependência que a indústria alemã apresenta da China são permanentes desafios à reformulação do papel da Alemanha nas cadeias de valor globais, já não falando nos problemas de desconfiança gerados relativamente à indústria automóvel alemã com o escândalo da falsa regulação das emissões dos motores alemães.
E claro que a brevidade acrítica com que Merkel acolheu as posições do seu ex-ministro das Finanças Schäuble quanto às políticas de austeridade representará sempre um ponto no seu curriculum que não encontrará consenso, tal como aliás a gestão pandémica o revelou.
Mas a verdadeira dimensão do paradoxo é a perceção de que apesar todas estas heranças de difícil digestão, quando imaginamos o contrafactual de nos interrogarmos o que teria sido este momento de evolução da União sem Merkel alguns arrepios incómodos percorrem-nos a espinha dorsal.
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