sexta-feira, 10 de setembro de 2021

JORGE SAMPAIO

 

                                            (Jornal Público)

(O internamento de Jorge Sampaio anunciava o pior, atendendo ao seu historial clínico de complicações cardíacas e respiratórias e à sua fragilidade bem visível nos seus últimos aparecimentos públicos. Esse presságio confirmou-se e mesmo não ignorando a sua fragilidade, muita gente fica com a sensação de que algumas causas poderiam ainda muito beneficiar da sua perseverança e serena determinação em torno das suas ideias, como ainda recentemente foi visível quando o Presidente Sampaio se propunha estender a sua causa dos estudantes sírios às estudantes afegãs necessitadas.)

A minha convivência de proximidade com Jorge Sampaio é curta, podendo resumir-se a uma participação numa das suas ações de campanha para a Presidência da República em Torres Novas e depois no âmbito das Comemorações do Centenário da República em que tive oportunidade de partilhar um almoço com amigos no Palácio de Cristal no Porto, com a companhia de um dos seus colaboradores na Presidência, o meu grande Amigo José Madureira Pinto. Durante algumas conversas com este último, deu para compreender o ambiente fervilhante de ideias, de livre pensamento e de profundo interesse pelos desafios do mundo contemporâneo para a democracia e para o desenvolvimento que caracterizavam o ambiente dos grupos por si dirigidos e animados.

Interpreto o desaparecimento de Jorge Sampaio como o prenúncio de que uma certa esquerda, com a qual muito me identifico, vai com o seu legado perecer e não tenho a certeza se haverá candidatos robustos e suficientes para fazer frutificar o legado das suas ideias. Uma esquerda que cortou em devido tempo com as sombras mais funestas da influência do PCP e da ortodoxia mais rígida, para construir campos próprios de reflexão e ação no universo do socialismo democrático. Corte esse que não impediu que, com o tempo e com a reflexão aprofundada sobre as condições concretas da ação política, construísse pontes de possível entendimento com as forças políticas à esquerda do PS, com relevo para o próprio PCP. Hoje, vários analistas se referiram à importância do acordo que levou Jorge Sampaio à Câmara de Lisboa, quebrando no plano local o tabu do relacionamento do PS com a sua esquerda. Estou em crer que quando a “geringonça” for estudada mais me profundidade pela ciência política, será então possível avaliar se a abertura e arte de António Costa foi ou não influenciada por essa pioneira iniciativa de Jorge Sampaio, que deixou profundas marcas positivas nos políticos do PS e da CDU (PCP) que protagonizaram na CM Lisboa essa experiência.

Nessa passagem de Jorge Sampaio pelo poder local na capital, foi possível perceber como a sua inteligência combinou reconhecimento da valia do planeamento estratégico numa cidade como Lisboa com a sua compreensão pelos temas da economia global e da governança nesse plano. Poucos políticos como Jorge Sampaio foram capazes de integrar coerentemente as três dimensões na ação política, a local numa cidade de grande projeção e cosmopolitismo, nacional e global. Neste último caso, as suas causas em torno da erradicação da tuberculose e do seu projeto de apoio aos estudantes sírios em Portugal mostraram bem como o seu conhecimento do mundo e dos seus desafios o conduziu a uma ação consequente, por vezes extenuante para a sua condição física, que o projetou bem para além do que normalmente se associa a um ex-Presidente da República.

Jorge Sampaio tinha traços de personalidade que o colocavam nos antípodas do populismo de hoje. Mas a sua prática ao longo de toda uma vida mostrou que não é necessário comungar esses traços de comportamento mais popular para exprimir de forma genuína e com sincera humanidade a mais profunda sensibilidade para com as situações de injustiça, de desigualdade, de abafamento da liberdade, de exclusão. E mostra também que é possível a um político analítico, atento à reflexão e à investigação, valorando sempre o seu contributo para a consistência da intervenção política, não perder o sentido da humanidade e da indignação relativamente à justiça e à desigualdade.

O Presidente Marcelo na sua alocução pela morte de Jorge Sampaio salientou, entre outros traços, que as origens familiares o poderiam ter conduzido a uma posição de elite arrogante e descomprometido com as grandes causas que identificam o socialismo democrático e a social-democracia, o que foi radicalmente o contrário. São estas características de Jorge Sampaio que eu mais apreciava, o Presidente culto, reflexivo, empenhado, sempre ávido de conhecimento para enriquecer a sua própria reflexão e, por essa via. dar mais qualidade à intervenção política.

Busco onde podem estar os referenciais de juventude para dar continuidade a esta esquerda que associava a Jorge Sampaio. As conclusões a que essa busca me poderá conduzir não vão provavelmente compensar ou colmatar a sensação de perda que a morte de Jorge Sampaio me inspira, sentida hoje pela manhã de sexta feira, dia em que estou por natureza mais distendido do que o habitual.

E aproveito também para enviar um abraço de solidariedade e de tristeza comum ao Amigo José Madureira Pinto que, seguramente mais do que todos nós, sentirá este acontecimento.

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