terça-feira, 28 de setembro de 2021

NARRATIVAS DA GLOBALIZAÇÃO

 

(Obviamente que as crises globais são as que têm maior probabilidade de produzir implicações para uma possível reforma da globalização. É uma consequência lógica que atravessa as diferentes dimensões em que a globalização se manifesta, nos movimentos de pessoas, de bens e serviços e de capitais, já para não falar da chamada globalização cultural, por muitos associada à insuportável homogeneização do mundo em função de um único padrão, o da materialidade transacionável. Sem surpresa, por isso, a crise pandémica e a sua dimensão económica teriam que trazer novas implicações nesta matéria. Mas a globalização é coisa que tem várias narrativas. Por isso e dadas também as débeis condições de governação existentes à escala global, a ambição de uma reforma ponderada dos seus rumos cede naturalmente ao confronto belicoso entre essas diferentes narrativas).

Em posts anteriores, tenho destacado essencialmente duas dimensões através das quais a pandemia deu forte na sustentação dos mecanismos da globalização.

Por um lado, a crise sanitária atingiu o âmago da globalização económica, afetando as cadeias de valor globais em que a produção mundial se havia organizado. O comércio e a fluidez de disponibilidade dos produtos intermédios que viajam pelo mundo em função da procura deslocalizada das cadeias de produção foram significativamente atingidos. Para mais, aconteceram obstáculos complementares na logística de transportes mundiais, seja pelo acidente do canal de Suez, seja pelos próprios efeitos do COVID em alguns portos de logística emissora para todo o mundo, suspendendo atividades e perturbando os tempos da oferta.

Por outro lado, os mecanismos insondáveis do medo e do egoísmo das políticas nacionais face à ameaça pandémica introduziram sucessivos bloqueios, como se de um baralho de cartas frágil e instável se tratasse.

A principal interrogação que estas dimensões suscitam é a de saber se estamos perante efeitos temporários, não propriamente de muito curto prazo, ou se, pelo contrário, deixarão marcas, sobretudo na organização das cadeias de valor. Tudo isto é agravado pela tensão geopolítica em torno do posicionamento face à China.

Com este pano de fundo, Anthea Roberts e Nicolas Lamp acabam de publicar na Harvard University Press uma leitura interpretativa das narrativas sobre a globalização que é muito útil para resituarmos hoje o que poderíamos designar de uma visão reformista da globalização. A perspetiva de Roberts e Lamp é talvez demasiado influenciada pelo modo como na sociedade e na política americanas essas narrativas são vividas, mas não deixa de ser útil por isso. Em meu entender, o SIX FACES prolonga e atualiza o impulso que, por exemplo, o discurso de Dani Rodrik sobre o chamado trilema da globalização tinha oferecido a uma perspetiva reformista da globalização já há alguns anos (aqui comentado em 2011, mesmo no início deste blogue, link aqui). Acresce dizer que Branko Milanovic, sempre presente neste blogue, ao dedicar-lhe uma revisão crítica no Brave New Europe torna a leitura da obra ainda mais sugestiva (link aqui). 

A narrativa que se instalou sobretudo nos anos 80 e 90 do século passado é a que projeta a globalização como benéfica para todos os intervenientes que queiram jogar as suas regras de mercado. A força da narrativa do livre funcionamento da globalização é curiosa, sobretudo porque a história económica tende a mostrar-nos que o esforço de desenvolvimento da grande maioria das economias avançadas assentou em regras que são literalmente o oposto dessa narrativa. A começar pelos próprios Estados Unidos. Num livrinho de 2016 que passou relativamente despercebido em Portugal, Bradford DeLong e Stephen Cohen (Concrete Economics), Harvard Business Review Press, mostraram que a chamada abordagem Hamilton, cunhada por Alexander Hamilton, de pendor claramente protecionista e orientada por critérios de inteligência estratégica nacional, constitui uma abordagem bem mais útil para compreender quem ganha e quem perde nos processos de crescimento económico. Comentei-o neste espaço em 2016 (link aqui).

Apesar dessa contradição, essa narrativa foi falsamente dominante durante os anos 80 e 90, que o digam conjuntos de países como a América Latina e a própria África que graças a esse seguidismo viram o seu desempenho económico ficar aquém do que foi conseguido nos modelos asiáticos claramente mais seletivos e com apostas estratégicas de maior risco pela antecipação que transportaram consigo. Mas como Milanovic o relembra, alguma coisa teve esta narrativa para oferecer. E isso é representado pelo comportamento do produto per capita mundial, praticamente duplicado desde os anos 80. Ao que se acrescenta a força do impacto que a globalização produziu sobre a redução global da pobreza absoluta no mundo, números claramente influenciados pela redução da pobreza absoluta observada na China.

Esta narrativa sobre a globalização foi claramente atingida, não direi de morte, mas com grande impacto pela crise pandémica. A combinação da desestruturação das cadeias de valor globais e do misto medo-egoísmo internacional atinge o âmago da narrativa.

A esta narrativa sempre se opôs uma outra, com maior ou menor violência (todos nos lembramos das manifestações ultraviolentas que eclodiam nas reuniões do G7, G20 ou outras reuniões internacionais de grande porte). Trata-se de uma narrativa “anti-mercado livre”, com uma clara orientação de esquerda mais ou menos radical, bastante heterogénea, mas onde se destacam dois tipos de argumentação. A primeira lógica reivindicativa é direi mais espontânea e baseia-se na denúncia do agravamento da desigualdade, que é a contra-narrativa mais poderosa para combater o argumento de que todos beneficiam da globalização. Foi além disso largamente impulsionada pelo prodigioso aumento da investigação sobre a desigualdade nacional, entre países e à escala mundial. A segunda lógica de argumentação é mais sofisticada, talvez mais contexto-dependente e baseia-se sobretudo no princípio de que a concentração empresarial está a ultrapassar limites insuportáveis e a condicionar fortemente a procura de trabalho. É conhecidíssimo o gráfico que anota o desvio entre o crescimento da produtividade do trabalho nos EUA e do salário médio e uma das razões para esse desvio é a existência de um monopsónio (monopólio de procura) no mercado de trabalho, que tudo mina. Como Milanovic assinala, este mundo que é objeto da contestação mais ou menos violenta por esta narrativa rege-se por duas regras fundamentais: a dimensão do mercado a explorar e a baixa de impostos. Por sua vez, o fator de impulso para a narrativa radical é claramente a perda da classe média nas sociedades avançadas ocidentais.

A narrativa radical da globalização é fortemente penalizada por dois elementos. Por um lado, não tem um indicador de contraponto para oferecer ao aumento do produto per capita mundial. Antes pelo contrário, pesam-lhe na argumentação autênticos desastres económicos em torno do intervencionismo, com ou sem revolução de suporte. Por outro lado, a perda da classe média ocidental não pode também desligar-se da “offshorização das economias”, que não é mais do que um pacto entre capitalistas do mundo ocidental e trabalhadores pobres dos países de destino da deslocalização da produção ocidental. Que o digam trabalhadores de países como o Vietname e Tailândia, por exemplo, que graças à deslocalização da produção ocidental viram os seus salários aumentarem, sem deixarem de ser salários baixos. Isto quer significar que a narrativa radical de esquerda da globalização não pode de modo algum apoiar-se na reinvenção do internacionalismo operário. Por mais paradoxal que o possa parecer, o grande impacto desta narrativa não é tanto ao nível da reforma da globalização, mas antes ao nível das políticas internas das economias avançadas. Combater a desigualdade, taxar os mais ricos, regular a concentração empresarial em termos mais efetivos, reforçar a produção de bens públicos são medidas de alcance poderoso. É assim uma narrativa que pretende mudar os países por dentro e não tanto mexer nos rumos da globalização, a não ser que esta narrativa aceite que essa influência será indireta, ao estilo de moralizar primeiro e globalizar depois.

É neste contexto em que a realidade da economia global parece opor-se às duas narrativas mais extremas irrompe a narrativa dos populismos de direita (os de esquerda reconduzem-se a algumas manifestações da narrativa anterior). A melhor forma de compreendermos esta nova narrativa é pensar no auge e ocaso do discurso de Trump sobre a globalização. A administração Trump começou com um estardalhaço dos diabos prometendo largas coisas sobre a defesa da produção americana e até ameaçou as grandes empresas americanas nos seus investimentos de deslocalização para outros países como, por exemplo, o México. Entrada de leão, saída de sendeiro diria o povo português. De facto, rapidamente se percebeu que Trump era incapaz de manter a tensão que introduziu, já que não tinha alternativas económicas a alguns fornecimentos externos, incluindo os provenientes da China. Todos nos recordamos dos problemas sentidos pela economia americana em matéria de painéis solares. Aliás, como é também perfeitamente visível no mercado interno português, a degradação do poder de compra de classes mais desfavorecidas e médias explica a popularidade dos armazéns chineses em todos os aglomerados urbanos deste país. É, assim, uma narrativa inconsequente, que pode aguentar-se pela força repetitiva do discurso, embalado pelo apoio dos que perderam empregos com a “offshorização” das economias, mas que não tem qualquer impacto duradouro sobre a reforma da globalização.

Basta pensarmos nestas narrativas e nas suas nuances para compreendermos o grande lio em que os rumos do aprofundamento da globalização se encontram. Com ou sem recuperação duradoura da tripla crise pandémica, os problemas estão cá de novo. Há qualquer coisa que falta e claramente a solução que é preciso afastar é aquela que resolvia o trilema de Rodrik com a suspensão da democracia e da barganha democrática dos salários. Já que dificilmente o Estado-nação irá desaparecer (como que por magia emergiria um poder legislativo e regulatório mundial), a ponte do trilema mais acessível é a reformulação das condições de integração económica da globalização. A globalização financeira parece disciplinável e a circulação das pessoas vai acabar por impor-se que não seja por questões simplesmente demográficas. É verdade que não temos gente de rasgo hoje no mundo para construir uma nova ordem económica internacional como a que foi gerada após a Segunda Guerra Mundial. E os economistas parece que desistiram de pensar estes problemas concretos como Keynes o fez, ousando tentar convencer quem decidia efetivamente no mundo, algumas vezes sem sucesso. Mas ainda assim continuo a pensar que, embora sem grandes rasgos, talvez doses intensas de bom senso ajudem a uma reformulação da integração económica. Há riscos desse bom senso ser atropelado em toda a linha. Um deles é o risco das teses do decrescimento a nível mundial prevalecerem como forma de abordagem à crise climática. O outro é a incompreensão para que as economias menos desenvolvidas encontrem fórmulas assistidas para as suas estratégias de industrialização, com tempo suficiente para as maturar, que não se confunde com a defesa acéfala de inviabilidades na divisão internacional do trabalho.

Novas narrativas precisam-se.

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