(Uma imagem do mundo complexo da logística internacional)
(Entre os chamados efeitos da pandemia económica mais conhecidos dos cidadãos, pela informação que recém e pelas situações pessoais em que muitas pessoas se viram envolvidas, a destruição de empresas e de postos de trabalho está porventura entre os eleitos. À medida que os sinais de recuperação, agónicos embora e talvez por muito tempo, se conhecem, outros efeitos mais subtis e de efeitos mais duradouros começam a ser conhecidos e não apenas porque as tensões inflacionárias andam por aí.)
Cedo se percebeu que por detrás dos devastadores e letais efeitos sanitários da pandemia, uma outra dimensão, a da interação entre a dimensão económica e social da pandemia, emergia com toda a violência, de que as quebras de produto e de emprego são a face mais visível.
Muita dessa destruição afetará irreversivelmente o produto potencial das economias, já que parte das empresas e dos postos atingidos pela suspensão forçada da atividade não regressará à atividade, mesmo que por força da regeneração natural feita da criação de novas empresas parte dessa perda de produto potencial possa ser compensada com investimento de raiz e capacidade de geração de novos postos de trabalho não necessariamente ocupados porque os perdeu e não regressará ao mercado de trabalho.
Diria que se trata da face visível do iceberg que se quebrou. Visível porque a informação mediatizada lhe concede mais espaço, mas também e sobretudo porque há sempre histórias pessoais e de vida com destruição de felicidade e horizontes.
Mas temos dedicado pouca atenção a uma outra manifestação da pandemia económica, que se pode resumir a uma expressão do tipo “a economia mundial já não é o que era”. De facto, quando as coisas vão bem, a economia mundial, sobretudo quando é vista pelas lentes de quem trabalha nas economias mais abertas, mais parece um relógio suíço na sua cadeia logística de fornecimentos. E não é da produção de produtos acabados que são exportados e importados de que falo. Falo antes da miríade de produtos intermédios que circulam pelo mundo e que são fundamentais para assegurar essa fluidez , resultante do simples valor de que a cadeia de valor da grande maioria dos produtos se fragmentou por muitos países e regiões, alimentando esse comércio internacional de transporte do valor pelo mundo até que ele desabroche num produto final vendido para o mundo a partir de uma dada localização.
Muito boa gente imaginou que as roturas e fenómenos de escassez de alguns desses materiais intermédios resultava de um fenómeno temporário de um aumento brusco de encomendas após longos e desigualmente constrangedores períodos de confinamento. Sem querer dizer que esses fenómenos de escassez temporária não se tenham verificado, a verdade é que à medida que a recuperação se generaliza, embora vigilante e agónica, se percebe que não se trata de roturas temporárias.
É verdade também que fenómenos como o bloqueamento do canal de Suez e devastações climáticas em algumas partes do mundo tiveram alguma quota de parte de responsabilidade no fenómeno. Mas tudo isso não é suficiente para explicar a ideia de que a economia mundial já não é o que era. E de repente compreende-se também que o relógio suíço da logística internacional de produtos intermédios é mais frágil do que se pensava, sobretudo para o consumidor “internacional” que se habituou à ideia de que a palavra escassez parecia ter desaparecido para parte incerta. Tudo isto foi ampliado pela tendência das estruturas de distribuição reduzirem stocks praticamente a zero, entregando-se à dependência do tal relógio suíço de circulação de materiais intermédios. A continuação dos surtos de incidência pandémica por todo o mundo tem acrescentado novos pontos de paragem em grandes centros logísticos de distribuição de mercadorias, e não apenas materiais-chave como os chips para computadores e outras tecnologias de processo estão em causa.
O que parece evidente é que o transporte internacional fiável e barato, sobretudo o de âmbito intercontinental, que amplificou determinantemente a globalização (enquanto a descida abrupta dos preços das comunicações precipitou a globalização financeira e dos serviços), está hoje senão ameaçado, pelo menos sujeito a fatores de rigidez com repercussões no seu custo.
Dirão os mais otimistas que são as condições ideais para certos países como Portugal reorganizarem o seu papel na divisão internacional do trabalho, procurando internalizar processos mais amplos de criação de valor. Não estou tão otimista como isso, pois a interdependência que hoje existe entre os países em matéria de produtos intermédios é tudo menos linear. Essas oportunidades de reorganização da posição na divisão internacional do trabalho são sempre limitadas e seletivas, porque se em alguns casos será possível aumentar a produção de bens intermédios nacionais para o conseguir não poderemos dispensar outros bens intermédios. Essa reconstrução de vantagens competitivas e de criação de novos espaços de progressão na cadeia de valor são lentos, implicam muita persistência e sobretudo certeza de horizontes que a “certeza radical” invocada pelo meu colega de blogue não garante, antes perturba.
E no meio de toda esta perturbação uma outra pode estar a gerar-se. Os bancos centrais podem não estar a entender as razões de algumas tensões inflacionárias que estão a formar-se a partir da rotura do circuito de bens intermédios e os falcões ou candidatos a sê-lo podem estar de garras afiadas para impor metas de gestão macroeconómica e monetária mais restritivas.
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