quinta-feira, 30 de setembro de 2021

ECONOMIA PÓS-PANDÉMICA

 

(Com as devidas diferenças de escala, esta imagem lembra-me a automatização do processo de busca de medicamentos na minha farmácia)

(Tem sido rica a emergência de antecipações sobre a economia que teremos quando se tiverem consolidado todos os efeitos da crise sanitária global em que o mundo está ainda mergulhado. O mapeamento dessas antecipações de tendências não é fácil de fazer e corre o risco de não nos oferecer um mapa, mas um puzzle cuja construção teremos de assegurar com criatividade e atenção focada no essencial, desvalorizando o pormenor. Por isso, quando nos surge um artigo de divulgação e acessível a muitos leitores e não um artigo científico por mais avançado que seja mas de circulação restrita que coloca bem o problema e nos ajuda na construção do nosso próprio puzzle é de saudar e divulgar).

É este claramente o caso do artigo de Carmen Sánchez-Silva, intitulado “La metaformosis de la economia que deja la covid” publicado no El País on line (pois para o folhear em papel é necessário ir a Espanha) do dia 26 de setembro na secção Negócios do jornal espanhol (link aqui).

Confesso que fui inicialmente crítico da perceção que muitos analistas apresentavam de que a pandemia iria representar mais um daqueles marcos que na economia do tempo longo se costuma invocar para periodizar a evolução entre o antes e o depois de alguma coisa. A minha resistência advinha do facto de não vislumbrar grandes matérias para classificar de novidade, sobretudo numa economia que já era global e que por isso sente de maneira diferente uma ameaça que toca a todos. Mas à medida que fui dedicando tempo à compreensão das mudanças que se perfilavam perante nós, comecei a perceber que mais do que reconhecer a presença de “novidades”, o que tínhamos pela frente era uma poderosa aceleração de mudanças que estavam aí expectantes e que pela via da pandemia passaram a beneficiar de um contexto extremamente favorável à sua difusão. Recordo que a mudança e a inovação enfrentam sempre a força da inércia e que assistimos sempre a uma longa luta entre o velho e o novo, acrescida da complicação de que o próprio velho por força da influência do novo também ele, ou parte dele, se movimenta e adapta para escapar ao desaparecimento puro e simples.

O artigo de Sánchez-Silva é útil porque se centra na aceleração de algumas mudanças já latentes no mundo global. E o que não deixa de ser cruel e paradoxal é que os efeitos tenebrosos da tripla crise sanitária, económica e social trazem consigo um contexto favorável à mudança e é isso em meu entender que se está a passar.

Curiosamente, a jornalista espanhola começa o seu artigo pelo aumento da desigualdade, plasmada na evolução da distribuição do rendimento e no aumento da pobreza absoluta no mundo (dados do FMI apontam para um aumento de 75 milhões de pessoas, que até pode pecar por defeito da verdadeira realidade), que acompanhou a desigual incidência dos efeitos pandémicos entre países, entre classes e grupos de rendimento. E no sentido contrário à correção dessa desigualdade de incidência, a capacidade de intervenção pública na resposta à pandemia, medida pela % do PIB em matéria de despesas e de outra natureza, não fez mais do que acentuar essa desigualdade de efeitos. Veja-se o gráfico abaixo.

 


Sobre esse assomo de realidade em que a jornalista nos coloca, sobressaem as tais acelerações de mudanças: a reorganização do mundo do trabalho, a automação e a digitalização, a alteração dos modelos de negócios, o abanão nas cadeias de valor globais, o novo olhar sobre a mudança climática, a eliminação do tabu papão sobre a necessidade de intervenção do Estado e por muito que o turismo possa recuperação as viagens de negócio provavelmente não serão mais as mesmas.

Se afinarmos a nossa análise perceberemos que todas estas mudanças não surgiram do nada. São acelerações induzidas por um contexto mais favorável à sua disseminação. E mesmo a questão da intervenção do Estado tinha sido já colocada com a crise de 2007-2008 quando se percebeu que a política monetária deixaria de reinar a seu belo prazer para regressar ao mix com a política fiscal (despesa pública e tributação). Ora isso não é senão a evidência de que o Estado importa. E obviamente em pandemia não é tempo de discussões ideológicas e mesmo a questão do peso da dívida tem de ser neste contexto relegada para um plano não central. Como dizia por estes dias o Secretário-Geral da OCDE que está longe de ser uma instituição entusiasmada pela intervenção pública, em tempos de pandemia não se discutem questões de dívida, algo de semelhante a várias alegorias centradas em tempos de guerra …

Mas por muito que custe aos que vivem mal com a indeterminação, sobretudo quando a vivem por dentro, mudança e inovação são sempre indeterminadas. Outros mais tarde compreenderão melhor os processos em que estamos hoje mergulhados. É uma frustração? Nem tanto, porque viver as mudanças e pressenti-las à nossa volta pode ser mais vibrante do que compreender no futuro o que hoje nos envolve, mesmo que indeterminado.

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