segunda-feira, 27 de setembro de 2021

QUE ESTRANHA NOITE!

 

                    (Mudanças de Câmaras Municipais, Jornal Expresso)

(Não imaginei, e pelos vistos não fui o único, que apesar da dança habitual dos ganhos e perdas e das mudanças de coloração em alguns municípios, a noite eleitoral autárquica fosse marcada pela vitória de Carlos Moeda em Lisboa e pela primeira derrota amarga que Fernando Medina sofre na sua trajetória política. Ainda que sociologicamente Lisboa continue claramente à esquerda, com sete vereadores do PS, dois da CDU-PCP e um do Bloco de Esquerda contra 7 da coligação liderada por Moedas, ninguém pode ficar indiferente à vitória deste último e sobretudo ao seu mapa de vitórias nas freguesias da capital, que deve merecer melhor análise. Tenho a sensação que a matéria de reflexão está para além de um simples post, mas ainda assim vale como primeira reflexão).

Com exceção de Lisboa, todas as novas vitórias relevantes do PSD e da sua coligação com o CDS (bem escondido nesse agrupamento) praticamente que as anunciei nas minhas reflexões pré-eleitorais.

O caso de Coimbra era bem evidente. A chama de governação e de inventiva municipal de Manuel Machado (extensiva à sua paupérrima liderança da Associação Nacional de Municípios) já há muito se tinha extinguido e o PS arriscava muito na promoção dessa candidatura. Mesmo que José Manuel Silva não seja propriamente alguém entusiasmante, percebia-se que a capitalização dos seus resultados de 2017 com uma coligação mais alargada iria assumir a imagem de mudança que a longa carreira de Machado (aliás sem preparação de sucessão) já era incapaz de protagonizar. Surpresa no resultado apenas na dimensão da diferença e na amplitude da maioria absoluta. Coimbra representava muito das mudanças que o PS necessita de empreender, não as realizou a tempo e o coelho da cartola com a nova Maternidade e a lengalenga da transferência do Tribunal Constitucional não dariam para compensar essa falta de mudança.

Antecipei também o caso de Barcelos. A gestão política do antigo Presidente da Câmara Miguel Costa Gomes foi desastrosa, agravada com as questões judiciais em que se envolveu. A Câmara Municipal sempre enfrentou problemas de organização interna que datam dos tempos em que o PS arrebatou a câmara ao PSD. Trata-se de um concelho difícil dado o seu número elevado de freguesias e a coligação PSD-CDS integrava ainda um dissidente do PS que vendeu cara a sua derrota interna. Uma vitória anunciada como se previa e aconteceu.

O mesmo se diga em relação ao Funchal em que a estabilidade organizativa da Câmara Municipal nunca foi alcançada após a coligação liderada pelo PS ter arrebatado a Câmara ao PSD, agravada pela saída de Paulo Cafôfo para a liderança do PS regional e para o Parlamento Regional. Pedro Calado é um peso pesado da política madeirense, vice-Presidente do Governo Regional de Miguel Albuquerque com grande visibilidade e o eleitorado regional aprecia esta capacidade de assumir riscos na vida política. Vitória talvez menos anunciada do que em Coimbra, mas antecipável por razões lógicas e sobretudo pela incapacidade de colocar a Câmara do Funchal a um nível organizativo similar ao que Albuquerque conseguiu atingir antes da ida para a liderança regional. Percebe-se que a Cafôfo se tenha demitido da liderança do PS regional, o que significa que prossegue o calvário dos socialistas na Madeira em busca da credibilidade para uma alternativa regional.

Claro que há outras vitórias do PSD, com Câmaras arrancadas ao PS, que têm algum significado, mas ele é manifestamente local, como é o caso de Miranda do Douro, Mondim de Basto, Mogadouro e Vila Flor, por exemplo. Portalegre é uma vitória a registar, arrancando a Câmara a um força independente. A vitória em Reguengos de Monsaraz é curiosa pelas peripécias em que o PS se colocou. Recorde-se que, depois da cena Covidiana na Misericórdia local, o ex-Presidente José Calixto foi proposto pelo PS a Évora, em que não conseguiu derrotar a CDU, abrindo o flanco a uma vitória do PSD em Reguengos.

Mas tudo isto é infinitamente menos importante que a vitória simbólica em Lisboa, a qual paradoxalmente pode ser, por um lado, o fôlego que Rui Rio necessitava, sobretudo pelos termos em que foi conseguida (contra sondagens e comentadores tão ao gosto do que Rio gosta de cavalgar), mas também pode indiciar o início de uma mudança, sobretudo se a projeção política de Carlos Moedas for por ele utilizada para mais largos voos. Por agora, os críticos de Rio ficaram caladinhos que nem ratos e estarão assim muito provavelmente até às eleições de 2023. O que impressiona neste resultado de Lisboa é a ambivalência da sua interpretação. Rio pode invocá-la ao seu jeito, mas ao fazê-lo não pode ignorar que o candidato vitorioso é o que os seus detratores imaginaram para o PSD, alguém mais cosmopolita, Comissário Europeu e sobretudo com o banho inconfundível do poder da Gulbenkian.

A noite é também estranha para o PS e para António Costa. Com perda controlada de algumas Câmaras (perdeu mais do que ganhou), a noite seria bem mais calma se não fosse a derrota em Lisboa. Algumas vitórias importantes, arrancadas seja à CDU seja ao PSD, Valença, Espinho, Vila do Conde (regresso ao poder com derrota de Elisa Ferraz), Póvoa de Lanhoso, Penela, Sertã, Montemor-o-Novo (quebrando um longo domínio da CDU), Monchique, Vila Real de Santo António, confirmações de grande expressão em Matosinhos e Vila Nova de Gaia, a imagem final fica ensombrada pela falta de intuição coimbrã, pela trapalhada no Porto que lhe valeu um péssimo resultado, mas Lisboa é que representa o murro no estômago.

Não tenho o domínio da gestão autárquica em Lisboa para tentar analisar o significado da derrota de Medina. O que eu sei é que Medina não tem, por muito que o valorizemos, o estofo que tinha Jorge Sampaio e este não enjeitou a coligação à esquerda para vencer a sua aposta em Lisboa. Não tenho ainda elementos que me permitam compreender a transferência de voto que penalizou a candidatura de Medina. Mas não me custa admitir que a qualidade da proposta de João Ferreira e da CDU para a questão da habitação terá custado a Medina alguma perda de votos. Até porque a passagem de Manuel Salgado pela gestão deixou marcas negativas e sabe-se lá se o dossier da informação veiculada para as embaixadas internacionais em Lisboa deixou também marcas.

Estive de sexta a domingo de manhã pela zona de Alcântara, uma freguesia em que o PS venceu em toda a linha, com um projeto de gestão de freguesia cuja qualidade foi largamente sufragada nas urnas. O que terá então acontecido nas outras freguesias em que houve significativa transferência de voto? Espero que o PS o compreenda, pois trata-se de eleitorado a ter em conta nas eleições de 2023 e como sabemos é essencialmente este eleitorado urbano, mais o novo eleitorado jovem que passa a votar, que costuma estar por detrás das alternâncias.

O que me parece evidente é que, quaisquer que sejam os contornos da governação até 2023, com ou sem remodelação governamental, dificilmente António Costa não poderá ir a jogo, no que pode ser o combate eleitoral mais tremendo da sua já longa política. E também dificilmente poderá ir a jogo sem pensar no que de simbólico e premonitório poderá esta derrota de Medina representar.

Por fim, quanto à merecida vitória de Rui Moreira, a sua não maioria absoluta tem também uma forte implicação: uma eventual perda de mandato ditada por questões judiciais (que eu espero que não aconteça) colocaria a governabilidade da Câmara em situação difícil.

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