segunda-feira, 13 de setembro de 2021

HAVERÁ UM CAPITALISMO PORTUGUÊS?

 

(Várias tentativas já foram feitas de associar à economia portuguesa uma modalidade de capitalismo, não necessariamente segundo a área que na bibliografia é conhecida pelas variedades do capitalismo. Recordo-me de expressões como capitalismo periférico ou semiperiférico, de capitalismo truncado e aqui e ali já foi feita alguma tentativa de importar a designação de “crony capitalismo”. Ajudado pelo olhar sempre atento e curioso do meu Amigo Leonardo Costa, dou com uma outra tentativa agora veiculada por um analista económico da revista Foreign Policy, Michael Moran (link aqui), revista que por acaso tem um inquérito recente de grande interesse dirigido a vários economistas sobre o que chama Fuzzyeconomics, link aqui)

O título do artigo é desconcertante: “O capitalismo de sardinha de Portugal é um modelo para o mundo”. E o subtítulo não o é seguramente menos provocador: “O modelo macroeconómico de Lisboa pode mostrar a outros pequenos países o caminho para a recuperação”.

O artigo da Foreign Policy vale o que vale e nunca saberemos ao certo o contexto que conduz à publicação de um artigo desta natureza, tipo ao qual não estamos habituados, fustigados tantos anos que fomos com a imagem perversa aliás comum ao sul da Europa, mas a que a nossa pequena dimensão não consegue dar a resposta rápida ou seguir o desinteresse com que, olímpica e matreiramente, os nossos amigos espanhóis e italianos tratam essa má imprensa internacional.

Mas lendo com atenção a bravata de Moran percebe-se que a direita portuguesa ande com vontade de passar pelo psiquiatra e também que os olhos de alguns socialistas e homens do governo brilhem de modo a que não estávamos habituados nos últimos tempos.

Na prática, o artigo insiste sobretudo na resiliência mostrada pela economia e sociedade portuguesa para, em pouco mais de uma década, aguentar e recuperar satisfatoriamente de um plano de ajustamento para evitar a bancarrota internacional e de uma crise pandémica afetando a economia global, mau que baste para uma economia pequena e fortemente extrovertida. Os números da recuperação pós-pandémica impressionaram o jornalista, sobretudo depois de comparadas as perspetivas de crescimento e a dimensão da taxa de desemprego. A esses números, a que curiosamente o governo e o próprio PS têm dedicado uma comunicação bastante contida (preparando armas para a proximidade do dia 26 de setembro?), Moran junta o modelo de qualidade de vida que tem sido possível implantar (referência a vários indicadores internacionais em que Portugal fica bem colocado quando cotejado com alguns habitués dos altos padrões de vida). E, surpreendentemente, traz para a fotografia a relativa contenção do custo de vida, perigosamente, contrariada pelo preço do imobiliário e pelas conhecidas dificuldades de solvência da procura habitacional, como o provam as dificuldades de geração de procura aos programas de arrendamento acessível.

Na parte final do artigo, Moran recorda o reconhecimento internacional dos níveis de resiliência e recuperação e até fala de um modelo que, não deixando de integrar a dimensão da atração por via da fiscalidade de cidadãos reformados com algum poder de compra, pode constituir um modelo de inspiração para pequenos países à procura de uma recuperação solvente da pandemia. Claro que o jornalista não ignora o problema da dívida, mas dá umas palavras a abater inspirado pelo pronunciamento recente de algumas organizações internacionais e pela posição até agora complacente das agências de rating.

E a metáfora da sardinha versus o salmão, a pequena dimensão face ao maior peso de outros países, fecha o artigo com um assomo de otimismo, relativamente à possibilidade do crescimento poder conjugar-se com a permanência das condições de vida atrás assinaladas.

Como é óbvio, esta visão de Moran é demasiado impressiva e externa (vê-se que o homem terá passado por cá e gostou, pode perguntar-se com quem almoçou ou jantou) para resistir a uma análise mais fria do pretenso “milagre português”.

                            (Com a devida vénia ao Ricardo Cabral)

Ainda há dias, no Público, o economista Ricardo Cabral chamava a atenção para o choque tremendo que a pandemia provocou na balança de serviços (o turismo, pois claro) e acaba assim a sua coluna de opinião:

Por conseguinte, as autoridades nacionais enfrentam o enorme desafio de dinamizar a estrutura produtiva do país de modo a torná-la capaz de reequilibrar as contas externas do país num prazo relativamente curto (5 anos?), quase sem instrumentos de política industrial. Essa afigura-se uma missão bastante difícil, após décadas a insistir na mesma tecla – a das exportações –, sem sucesso, desta vez mesmo com os salários reais a descer (ou se calhar por isso mesmo). Seria bom não continuar a insistir numa estratégia que não resultou no passado”.

Dois tipos de forças vão confrontar-se nos próximos tempos: a do grupo de interesses que tentará por todos os meios colocar o turismo no nível apelativo do pré-pandemia e a de um outro grupo, em que posso incluir-me para debater a questão, que aposta numa relevância não tão fulgurante do turismo e que apostará na criação de fatores de substituição parcial dessa relevância para compensar a dificuldade de regresso a essa fulgurância. Essa batalha vai jogar-se decisivamente no tipo de política de inovação que o período de programação plurianual de 2021-2027 pode possibilitar, tirando partido de algumas medidas infraestruturais asseguradas, espera-se, pelo PRR.

Mas independentemente do artigo de Moran representar tão só uma visão parcelar e impressiva da recuperação projetada, podemos dizê-lo pitoresca, o conjunto de competências de organização para a hospitalidade, rigorosamente regulada e com implacável controlo de qualidade, não pode ser por nós ignorado, economistas de maior atenção aos fenómenos da mudança estrutural e da inovação.

Se o modelo português de crescimento para os próximos anos conseguir territorializar melhor a sua base de competitividade, mais e melhor turismo e mudança estrutural mais consequente pode não constituir um “trade-off” inexorável. Basta para isso que a alocação de recursos de investimento no turismo não seja concebida como versão moderna da galinha de ovos de ouro ou de um qualquer El Dorado prometendo elevadas taxas de rendibilidade, mas antes como um negócio em que a qualidade e inovação sejam as vias de compensação do tempo não voltar para trás em termos de procura turística.

Façamos desta matéria o debate central para de uma vez por todas estabilizarmos por onde devemos ir em termos de base territorial para a nossa competitividade. Contem com este blogue para esse debate permanente.

E quanto ao artigo da Foreign Policy estou como o Leonardo Costa:  "é melhor pensarem isto do País do que o seu contrário"; de facto, corruptos (que os temos), preguiçosos (que não somos), desorganizados (já fomos mais) e desqualificados (estamos a cruzar o Bojador) são mimos que dispensamos bem.


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