domingo, 12 de setembro de 2021

A TRAPALHADA DA INOVAÇÃO

 

(Vai por aí um grande alarido sobre a queda de Portugal no ranking do European Innovation Scoreboard, sobretudo porque a queda de um ano para o outro (com quebra de série, acrescento eu) tem algum significado e ela vem contrariar o discurso positivo que começava a instalar-se. Como seria de esperar, como a queda assinalada coincide com uma mudança interna na responsabilização pela resposta ao Community Innovation Survey (CIS), do Ministério da Ciência e Tecnologia para o INE, as comadres acusaram o toque e cada qual, à boa moda portuguesa, quer sacudir a água do capote e distanciar-se do trambolhão assinalado. E se não fôssemos por aí e assumíssemos de uma vez por todas uma atitude não só mais analítica mas também mais colaborativa?)

A matéria da qual esta trapalhada se alimenta conheço-a bem não apenas por razões académicas, mas igualmente por razões profissionais. Por isso, vou tentar ir um pouco mais além do que esta lamentável troca de galhardetes entre quem respondia pelo CIS e agora responde por ele nos tem trazido, uma reação bastante pindérica e de todo contraditória com o tema do indicador (a inovação) objeto da discussão.

O indicador-síntese do European Innovation Scoreboard é obviamente um indicador compósito, integrando pois uma família diversa de indicadores. Uma parte desse indicador compósito tem uma existência objetiva, pois abrange quer indicadores de registo contabilístico, como o são por exemplo os indicadores de despesa bruta de I&D, empresarial, pública, universitária ou de instituições privadas sem fins lucrativos, os indicadores de recursos humanos equivalentes em tempo integral (ETI) em atividades de I&D ou os números de doutorados ou de publicações científicas em rankings internacionais prestigiados. Mas uma parte considerável do indicador é composto por elementos que resultam das respostas do tecido empresarial português ao questionário europeu do CIS sobre atividades de inovação.

Ora, é importante recordá-lo, o CIS sobrevalorizava claramente, como toda a gente sabia, o desemprenho das PME portuguesas em matéria de inovação, mas como nos afagava o ego e o dos nossos políticos, ninguém se preocupou lá muito com tal sobrevalorização. Esse desempenho inovativo desproporcionado percebia-se quando era confrontado com o discurso da academia sobre as reais capacidades de inovação do tecido empresarial português, que bateu sempre na tecla da sua incapacidade inovativa para explicar as dificuldades de translação de conhecimento-inovação para as empresas. E, por outro lado, os tons favoráveis do CIS não batiam bem com a evolução dos níveis de produtividade desse tecido empresarial que tendiam a permanecer estagnados e assim a contradizer o indicador de desempenho inovação do CIS. Trata-se de um indicador que depende fortemente do modo como as empresas interpretam o que é inovação para o questionário e por isso não percebo tanto alarido que se tem formado por aí.

Dirão alguns (e dar-lhes-ei razão) que o ano a que o European Innovation Scoreboard se refere integra um ano de boa aplicação de Fundos Estruturais Europeus vitais para a problemática da inovação em Portugal, sabendo-se que tais aprovações de projetos corporizam mudanças assinaláveis no comportamento empresarial. Mas está por estudar se as empresas que respondem ao CIS coincidem com empresas apoiadas por esses Fundos e, mais do que isso, sabemos que as empresas apoiadas estão longe de representar a totalidade do tecido empresarial de PME às quais se aplica o referido indicador de desempenho.

Mas poderão perguntar-me que credibilidade poderemos atribuir à queda do indicador? Há vários elementos que falta incorporar na discussão, algo de bem mais importante do que Ministério da Ciência e Ensino Superior, Agência Nacional de Inovação e INE se embrenharem numa disputa de passa culpas.

Em primeiro lugar, é importante saber se a queda do indicador acontece mais por força dos indicadores de extração objetiva ou se, pelo contrário, são os indicadores de resposta das PME, de extração a partir do CIS, que explicam o trambolhão. Por razões que posso explicar mais adiante, posso admitir que o ritmo de evolução das despesas de I&D possa atravessar alguma desaceleração neste momento, sobretudo após a trajetória de forte crescimento observada nos últimos anos. Mas também não me custa admitir alguma volatilidade nas respostas das PME ao questionário, sobretudo se este não tiver preenchimento bem acompanhado e com controlo rigoroso de qualidade das respostas. Como a ex-ministra Graça Carvalho defende, foram os novos indicadores ligados à indústria privada que penalizaram a posição portuguesa, o que é algo bem antecipável (link aqui).

Em segundo lugar, é um indicador que não depende apenas de nós. O ritmo a que evoluem os outros países da União é fundamental e é indiscutível que existem outros países europeus cuja organização institucional do sistema de inovação é mais perfeita e acabada do que a nossa. Logo, não me espantaria que alguns desses países estejam a evoluir a ritmos mais consistentes.

Em terceiro lugar, não vejo porque razão tem sido o Ministério da Ciência e Ensino Superior a dirigir a aplicação do CIS em Portugal, embora lhe caiba a realização do importante e decisivo Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional, do qual se extraem os indicadores de registo mais objetivo do European Innovation Scoreboard. Não tenho dúvidas de que um indicador de inovação deve ser acompanhado e monitorizado pela Agência Nacional de Inovação, sobretudo se a esta corresponderem os recursos que a problemática da inovação exige que um país como Portugal invista. É a ANI que está mais perto das empresas que de facto inovam e que não se limitam a responder que sim no questionário agora em foco.

Poderá a transição do Ministério da Ciência para o INE ter gerado alterações de critérios, por exemplo, que expliquem o observado. Não ignoremos, entretanto, que tal como o descrevi em post anterior, houve mudanças no indicador, qjue desapareceram alguns indicadores e que foram acrescentados outros, para os quais não existe histórico comparativo.

Moral da história, na minha interpretação: vários fatores podem ter ocorrido e o fundamental é recuperar de novo o movimento de melhoria que vinha sendo observado. A mudança do indicador no sentido de atribuir aos contextos empresariais uma maior importância será sempre desfavorável a Portugal. Mas o que a trapalhada nos mostra é que o enquadramento institucional do sistema de inovação em Portugal continua débil como o temos retratado em vários trabalhos. E, sei do que falo, não vale a pena agora o Ministério da Economia vir a terreiro, vestindo a pele de virgem ofendida, porque se há Ministério e serviços dele dependentes que tem pouco ligado às questões da inovação o da Economia mostra-o de forma bem clara. Basta, por exemplo, recordar a sua histórica indiferença e falta de sensibilidade ao tema da especialização inteligente, no período de programação anterior e na preparação do 2021-2027. Além disso, o modo atamancado como a Administração da ANI foi alterada, sem qualquer elo de ligação com a gestão anterior (cuja Presidência deixou imenso a desejar, é bom recordá-lo) mostra bem como os temas da inovação continuam subalternos na afirmação desses serviços.

Por conseguinte, de virgens ofendidas estamos nós fartos. Aliás, só teria sentido haver na administração pública portuguesa um grande alarido pelo trambolhão no indicador compósito se a governação fosse mais competente, o que não tem acontecido.

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