(Urbano compulsivo, logo sem grandes referentes na natureza que me permitam acompanhar o tempo, as aleluias de Seixas são um dos meus referentes preferidos, anunciando a época pascal, por vezes algo baralhadas com as mudanças climáticas, mas este ano pode dizer-se no tempo certo. Anunciaram que poderiam florescer mais cedo, mas reconsideraram e em compita com o esverdeamento pujante dos carvalhos, aqui estão elas a marcar o tempo. As aleluias representam assim a expressão do meu calendário, mais um ano, agradecimentos a quem de direito, glória à vida, com a responsabilidade de não a comprometer, nem desleixar. O que me levou a protelar um pouco a escolha do tema para o reencontro com as aleluias. O tema que escolhi para hoje poderia designar-se pelo título “Algoritmos e populismo”. Um pouco estranho, mas gerador de preocupações de grande atualidade.)
A reflexão foi inspirada pela leitura de um número especial da revista Daedalus, volume 152, nº 1, Inverno de 2023, revista da American Academy of Arts and Sciences, de acesso livre ao abrigo do Creative Commons, revista associada ao MIT e publicada pela MIT Press. O artigo em causa (1) tem a coautoria da minha socióloga preferida, Marion Fourcade (Henry Farrel como coautor), da Universidade de Berkeley, preferida sobretudo pela maneira como ela fala dos economistas e da economia em geral. O artigo chama-se “The Moral Economy of High-Tech Modernism”.
O mundo que Marion Forcade designa de “high-tech modernism” é aquele que é representado pelo universo dos algoritmos de máquinas aprendentes (learning machines), uma das variantes da inteligência artificial tão discutida nos tempos que correm. O “high-tech modernism” é comparado com o chamado “high-modernism” regra geral associado às grandes burocracias e conglomerados empresariais, que se notabilizaram pela sua capacidade de categorizar, organizar e explorar informação. Em contraponto a esta realidade, Farrel e Fourcade associam ao “high-tech modernism” a utilização de técnicas quantitativas e de digitalização de informação também para atividades de classificação e categorização, mas com a particularidade de substituírem os métodos analógicos até aqui utilizados pelas grandes burocracias.
O artigo centra-se sobretudo na análise do poder dos algoritmos que nos categorizam a vida e os nossos consumos, afeições e perversidades a partir da nossa interação diária com os nossos devices de estimação, o portátil, o tablet ou o smartphone. Farrel e Fourcade insistem sobretudo na natureza cibernética e autocorretora dos mais avançados algoritmos gerados por máquinas aprendentes: “as categorias criadas são automaticamente e dinamicamente ajustadas à luz das reações que elas próprias produzem. Atentem nesta preciosidade: “O lançamento das máquinas aprendentes – que utiliza os sinais mais frágeis para formular juízos, como por exemplo o de utilizar o estado médio de carregamento da nossa bateria no smartphone para determinar a probabilidade de repagamento de um empréstimo – tornando assim o processo de avaliação da capacidade de cumprir créditos ainda mais opaco e menos suscetível de ser respondido”.
Mas a dimensão mais sugestiva do artigo é a que associa os resultados da aplicação destes algoritmos à representação do juízo popular, manifestamente contra e em contradição com o snobismo das elites. Os algoritmos aprendentes revelariam assim a síntese da análise do todo, aproximado pelos milhões de comportamentos e reações que caem sob a análise quantitativa dessas máquinas aprendentes. “O high-tech modernismo, pelo contrário, mina continuamente o juízo das elites, alimentando uma crise da expertise. Os algoritmos propõem-se ler melhor raios X do que os radiologistas, prever compras melhor do que os especialistas de marketing, compreender melhor a nossa sexualidade do que nós próprios e produzir um novo texto ou código melhor do que qualquer escritor profissional ou engenheiro”. Ou seja, os algoritmos geram “uma vox populi pseudodemocrática e extremamente volátil” e que “as nuvens e as multidões representam melhor os desejos das pessoas”.
Algoritmos e populismo mais abjeto podem perfeitamente tornar-se aliados. A síntese de Farrel e Fourcade é excelente: “A relação entre high modernism e high-tech modernismo é uma luta entre duas elites: uma nova elite de codificadores, que clamam ser capazes de mediar a sabedoria das massas e uma elite mais velha que baseou as suas reivindicações na legitimidade do conhecimento especializado profissional, científico ou burocrata.
Aplicando esta tese, o nosso populista palhaço, Ventura de seu nome, precipitou-se pois imaginou que a sua reação ao acontecimento do Centro Ismaili seria a tal vox populi dada pelas redes e pelos algoritmos que as regem. Tudo indica que a generalidade do povo português percebeu o que se passou e o Centro Ismaili acaba de dar uma bofetada de luva branca a todos aqueles que viveram essa ilusão ao decidir acolher os três filhos do tresloucado agressor afegão.
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1) https://direct.mit.edu/daed/article/152/1/225/115009/The-Moral-Economy-of-High-Tech-
1)
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