(A intensa e descontrolada polarização em que a sociedade americana se encontra mergulhada explica, em meu entender, porque cada vez que nos esforçamos mais para a compreender sintamos uma enorme frustração, oculta numa grande perplexidade. A acusação que recai sobre Trump é tanto mais paradoxal quanto mais a generalidade das pessoas decentes clama que seria fundamental ele poder ser antes acusado por questões como o incentivo à violência e ao ódio ou pela grosseira violação da lei na Geórgia, procurando interferir nos resultados. A estranheza aumenta quando nos apercebemos que a acusação vai servir a Trump para movimentar as suas hostes em direção a uma possível vitória nas primárias Republicanas, sugerindo que quanto mais boçal melhor, a populaça Trumpiana adora que instrumentalizem a sua raiva. Enquanto todo este Circo chegava à Cidade, foi conhecida informação recente sobre a sociedade americana que o sagaz Lawrence Summers (1) não hesitou em classificar de a notícia mais perturbadora sobre o real estado da sociedade americana. As questões da saúde não param de nos surpreender nos EUA. Depois do Nobel Angus Deaton e Anne Case nos terem caracterizado as “mortes do desespero”, eis que se sabe que o recuo da esperança de vida à nascença americana tem sido essencialmente devido à cada vez mais jovem mortalidade: até fazer 40 anos, 1 em cada 25 morre segundo os números agora publicados.)
O meu ponto é simples. Uma polarização do tipo da que atravessa a sociedade americana não será seguramente produto do acaso e do aleatório. Deve corresponder a fórmulas e intensidades de raiva habilmente orquestradas pelas forças sociais, políticas e religiosas que capturaram sem margem para dúvidas o Partido Republicano. Estamos a falar de massas populacionais prontas para o estímulo “pavloviano” que as faz reagir violentamente, como foi confirmado pela invasão do Capitólio, que não pode ser considerada um movimento espontâneo em que a febre da euforia coletiva precipitou os fatais acontecimentos. É nesse cadinho de raiva acumulada que Trump se declara para virar em seu próprio proveito eleitoral a acusação que recai sobre si, por iniciativa de um procurador de Nova Iorque que achou por bem que já bastava de tanta basófia, mesmo considerando o parecer de alguns juristas (independentes???) e alguns jornalistas da nossa praça que consideram o caso pouco robusto para lograr a condenação do ex-Presidente dos EUA.
Foi nessa linha de busca de contextos favorecedores da raiva acumulada que fui conduzido a valorar com atenção esta notícia tenebrosa sobre as condições de saúde prevalecentes na sociedade americana.
O Nobel de Economia Angus Deaton e a sua mulher a investigadora Anne Case ofereceram-nos uma poderosa caracterização da morbilidade da sociedade americana, cunhando para todo o sempre o conceito de “deaths of despair” (as mortes do desespero), que mereceu honras de post neste blogue em 2020 (2). O conceito pretendia abranger a mortalidade de cidadãos brancos produzida por uma combinação explosiva de droga, de alcoolismo, de isolamento social e outras fontes de morbilidade, às quais o depauperado sistema de saúde americano não consegue (não quer) dar resposta.
O fenómeno é estranho e descreve-se em poucas palavras. Ao contrário do que as boas almas imaginariam, o crescimento sustentado do poder de compra médio americano não tem sido acompanhado de melhorias (esperadas) nas condições de vida e na esperança de vida à nascença. Antes pelo contrário. O artigo do Financial Times que suscitou inicialmente a discussão compara o símbolo do Reino Unido para o desfavorecimento social, a cidade costeira de Blackpool, em que a esperança de vida britânica atinge o seu valor mais baixo, com os valores médios americanos e conclui que são iguais. O paradoxo é evidente. Para uma diferença abissal em termos de poder de compra per capita, em que os EUA superam largamente os valores de Blackpool, a esperança de vida é a mesma. No topo social, os EUA comparam bem com o Reino Unido, ao passo que na base o desastre americano é total. Mas o que é mais surpreendente neste artigo do Financial Times (3) é que o estado desfavorável da esperança de vida americana é comandado essencialmente pela maior mortalidade entre os jovens. E as causas continuam a ser semelhantes: overdoses, violência armada, condução perigosa e outros problemas relacionados com problemas sociais fortemente enraizados. Sim, claro que a pandemia influenciou estes dados, mas o problema é que a sociedade americana, ao contrário dos outros países, não recuperou e esse tipo de mortalidade não cessa de aumentar.
Ou seja, além dos pobres e das diferentes categorias de vulnerabilidade temos agora na sociedade americana a mortalidade entre os mais jovens a puxar para baixo a esperança de vida à nascença.
Tudo indica, assim, que existe bem lá no fundo da sociedade americana uma profunda “doença social” que, paradoxo dos paradoxos, está a ser vilmente explorada por quem precisamente não tem qualquer proposta para a resolver, recusando sistematicamente as correções necessárias do sistema de saúde e de proteção social. Regressar neste contexto de “doença social” ao estafado slogan de “Will Make America Great Again” é das mais profundas aberrações alguma vez historicamente construídas. E o julgamento de Trump nem ainda efetivamente começou.
(1) https://twitter.com/LHSummers/status/1641831721178939392
(2) https://interesseseaccao.blogspot.com/2020/05/the-deaths-of-despair.html
(3) https://www.ft.com/content/653bbb26-8a22-4db3-b43d-c34a0b774303
(1
Sem comentários:
Enviar um comentário