quarta-feira, 5 de abril de 2023

ROSANVALLON – TAKE 2

 


(De abalada para Aveiro, ver post anterior, fica algum tempo para me regozijar com a atenção que o meu colega de blogue dedicou à excelente entrevista que Pierre Rosanvallon concedeu ao Libération. O título que o jornal atribui à entrevista “Há em Macron uma arrogância alimentada pela ignorância social” é todo ele uma profunda base de reflexão para a ação política de hoje, não apenas em França, mas sobretudo à esquerda e ainda mais concretamente nas hostes socialistas. O pensamento de Pierre Rosanvallon integra a influência de formação que a investigação e a literatura em língua francesa exerceram na minha progressão intelectual e profissional e durante algum tempo permaneceu como a última réstia de influência francesa, numa fase em que a minha fonte de reflexão passou determinantemente para a língua inglesa. Rosanvallon sempre foi daqueles pelos quais valia a pena não atirar para a indiferença a cultura francesa. E não se percebe de todo como o pensamento do intelectual francês deixou de acompanhar a visão da sociedade francesa alimentada pelo Partido Socialista Francês, senão desaparecido, pelo menos a navegar em áreas da mais enigmática irrelevância política.

A identificação em Macron de uma “arrogância alimentada pela ignorância social” é das críticas mais profundas que conheço à relativamente meteórica ascensão (que já viveu melhores dias) do Presidente francês. Essa crítica recorda-nos que o pensamento de um político é ele próprio uma construção social, contextualizada, e de facto o caminho de progressão de Macron dificilmente o conduziria a uma sabedoria social, prostrando-o pelo contrário em torno de uma ignorância social, que o impede de compreender a rejeição que a sua personalidade tem despertado junto da França em tensão, não apenas da arregimentada pela França insubmissa de Mélenchon, mas de outras correntes e origens capturadas pela extrema-direita. E se as teses da construção social das nossas perspetivas estão certas, dificilmente algum dia Macron irá poder mostrar junto dessa população que ganhou essa sabedoria social, sobretudo agora que a polarização conduziu a sociedade francesa a uma profunda irracionalidade.

Mas o que me interessa destacar é a referência de Rosanvallon ao que ele designa de ignorância social ser extensível ao que se observa hoje entre os quadros políticos mais jovens que alimentam, por exemplo, em Portugal, seja o PS, seja o próprio PSD. Quando o pensamento socialista de origem ocidental se deixou seduzir pelas promessas do “New Public Management”, muito forjadas no Labour de Tony Blair e rapidamente se generalizou a praticamente todos os socialistas europeus, essa viragem teve inclusivamente manifestações somáticas, com todas as jovens promessas a vestirem-se de modo similar. Essa transição, numa primeira perspetiva, vinha ocupar um vazio perigoso no pensamento socialista da época, que consistia na ausência de sensibilidade relativamente ao mercado e às condições de eficiência na gestão, seja ela privada ou pública. Ainda hoje, o pensamento socialista em Portugal continua a não ter uma perspetiva sólida sobre a empresa sem geral e sobre a necessidade de nesse entorno forjar visões alternativas da sociedade. No meu modesto entender, essa transição falhada traduz-se hoje por uma dupla insuficiência: persiste a ausência de uma perspetiva sólida sobre a empresa e essa viragem trouxe também a tal ignorância social de que Rosanvallon fala a propósito de Macron. Ora, é em torno da desigualdade, que está aí instalada e a desafiar a nossa imaginação e vontade políticas para a combater, que será possível, simultaneamente, construir uma perspetiva mais sólida da empresa como célula fundamental da organização da economia de mercado e construir uma sabedoria social que permita conquistar o centro-esquerda.

De facto, quando afinamos a nossa atenção para compreender que rejuvenescimento político estará a acontecer pelas bandas da esquerda não radical, rapidamente compreendemos que não só escasseia a tal sabedoria e sensibilidade social como continua a predominar a tal incapacidade de compreender a verdadeira dimensão da empresa como célula de organização de uma sociedade menos desigual. O melhor indicador dessa incompreensão é dado pelos comportamentos de gestão observados na esfera pública. O inquérito parlamentar à TAP vai ser um alfobre imenso desses exemplos, mas a realidade é infelizmente mais vasta.

Pergunto-me se o universo do centro-esquerda e socialista está condenado a uma de duas: ter sensibilidade e sabedoria sociais, mas não ser capaz de entender e intervir na empresa ou aproximar-se desta última e entrar no mundo da ignorância social de que fala Rosanvallon?

Cá por mim, continuarei a rejeitar essa dicotomia e a defender que é possível compreender o social e trabalhar para que a empresa seja um dos primeiros domínios do combate à desigualdade. Mas compreendo que os tempos eleitorais estão difíceis para exercitar e praticar esse equilíbrio.

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