sábado, 22 de abril de 2023

A CONSTRUÇÃO MEDIÁTICA DA RADICALIZAÇÃO

 


(A segunda parte da crónica de José Pacheco Pereira no Público (1), intitulada de “Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia”, mais do que a primeira é, sem sombra de dúvidas, a resposta mais consistente e fundamentada a todo o processo de radicalização que poderíamos descrever como “dissolução já!”. E o que é verdadeiramente espantoso é que seja Pacheco Pereira e não a esquerda na sua diversidade a comandar esse combate. A crónica desmonta com inteligência como a partir de um número já excessivo de situações de má ou incompetente governação emergiu uma aliança estranha entre uma certa comunicação social e as cloacas mais horrendas das redes sociais, cavando a primeira a sua própria sepultura com esta cedência nos princípios fundamentais do jornalismo de qualidade. Acusações de grande calibre concretizam a denúncia e o combate, algumas das quais valerá a pena seguir com atenção nos seus desenvolvimentos futuros.

 

Da crónica destaco o seguinte excerto:

É um erro pensar que esta ofensiva vem do Chega. O Chega é um instrumento, é um parceiro menor que é necrófago. Está no fundo do mar alimentando-se dos cadáveres que se afundam. Vem de uma conjunção de pessoas, grupos e lobbies privados que tem vindo a financiar de forma muito significativa um aparelho ideológico e de propaganda com peso significativo em certas universidades e num sistema comunicacional, muito profissionalizado e muito capaz, e que impregna toda a comunicação social. A ele se associam vários “intelectuais orgânicos” conhecidos pelas suas relações com a direita radical. Vários jornais deficitários, sem vendas nem viabilidade, juntam-se a projetos mais consistentes, onde políticos transvestidos de jornalistas fazem agit-prop, e que num mesmo dia fazem o ciclo da manhã na rádio, na tarde na RTP, à noite na SIC, TVI, na RTP. Um dos aspetos mais eficazes é a “conversa” na rádio nos horários nobres da manhã, usando com muita eficácia e profissionalismo o carácter intimista da rádio. Nos EUA, a rádio é um dos maiores investimentos do sector mais radical de apoio a Trump.”

É curioso como José Pacheco Pereira denuncia a orquestrada tentativa de desacreditar tudo que possa ser associado ao setor público, ampliando a justíssima agitação em torno dos inúmeros exemplos de funcionamento deficiente dos serviços públicos, através de um contínuo metralhar do ouvinte e do espectador com as mesmas evidências, tratadas até à exaustão. Em contrapartida, só quando uma evidência irrecusável de mau funcionamento de estruturas privadas é por alguém divulgada é que a comunicação lhe dedica alguma importância, como é o caso exemplificado por JPP dos lares privados, um dos raros casos em que o que JPP designa de “indústria das denúncias” integra as evidências do privado.

Habilmente, o cronista dissocia destes lobbies as grandes empresas cotadas na bolsa, identificando a pressão mais decisiva em núcleos que ele considera similares aos “financiadores do Partido Republicano de Trump, que pretendem aumentar a sua influência e manter intocável o seu direito virtual de veto em tudo o que mexa nos seus interesses, no plano empresarial, no plano laboral, nos impostos, nas obrigações e nos mecanismos de regulação”. Mas quem é quem nesta onda de pró-radicalização? São as forças que se ocultam por detrás do Observador as manifestações mais intelectualizadas desse movimento? Esta parece-me ser a dimensão de compreensão futura mais relevante, pois um movimento desta envergadura, que está definitivamente instalado na política portuguesa, tem de se alimentar de manifestações mais concretas. Creio que a intelectualidade ressabiada do Observador não chega para lhe dar corpo e expressão.

Pela minha parte, não haverá manifestação de incompetência ou má governação que escape ao olhar crítico deste blogue. Mas interessa-me marcar uma diferença relativamente a esse esgoto de mediatização que vai campeando por aí, confundindo malevolamente situações concretas de incompetência, compadrio ou de má governação em geral com o panorama global de funcionamento de serviços públicos.

O que me impressiona é que a denúncia do que está instalado não tenha expressão significativa na diversidade da esquerda. José Pacheco Pereira deu um passo importante e contundente para o tornar possível. Outras vozes e mais pensamento crítico são necessários para combater de forma consistente esta ameaça.

(1) https://www.publico.pt/2023/04/22/opiniao/opiniao/derrubar-governo-signifique-estuporar-democracia-ii-2047033

 

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