sexta-feira, 21 de abril de 2023

UMA LIÇÃO DE REAL POLITIK

 


(Já perceberam que o Eixo do Mal começa a ser para mim uma deceção enquanto programa de comentário político, com Pedro Marques Lopes e Luís Pedro Nunes a perderem consistência e Clara Ferreira Alves e Daniel Oliveira a justificar atenção mais pelo que escrevem nas suas crónicas do que propriamente pelo que contribuem para elevar o nível de discussão do programa. Tal como previa a intervenção de ontem de Clara Ferreira Alves sobre a controvérsia das declarações mais recentes de Lula da Silva sobre a Ucrânia, na antecâmara da sua visita mais ou menos relâmpago a Portugal, anunciava a crónica de hoje na revista do Expresso e não me enganei de todo. Confirmando a minha tese antiga de que CFA é mais ela escrevendo do que intervindo no programa, aqui temos uma crónica que é uma verdadeira lição de Real Politik e que aproveito para reincidir em alguns pontos da minha própria crónica sobre o assunto.

 

É por aí que começo. No post a que me refiro (1), quis sobretudo mostrar que temos todo o direito como cidadãos de consciência ocidental a criticar a posição de Lula da Silva em relação não propriamente à invasão da Ucrânia (porque nesse campo o Brasil tomou posição), mas sobretudo quanto ao balanço entre continuar a defender a resistência da Ucrânia, sem deixar de pensar na mesa de umas possíveis negociações. Mas, do ponto de vista da política externa e da relação entre países, a aproximação desejável de Portugal ao Brasil não pode ignorar que este tem a sua própria política externa, marcada sobretudo pela sua inserção latino-americana (e a sua distância face aos EUA é histórica) e pelo facto de integrar um grupo de economias emergentes, com um elevado potencial de pujança económica, que não morre de amores pela hegemonia americana e que, como o sabemos bem, não são propriamente um modelo de democracia. Nesse contexto, a pretensão de alguns de dar lições de política externa ao Brasil e a Lula da Silva mais do que um propósito de afirmação da coerência de valores é uma perspetiva algo saloia da diplomacia externa, como se nos meandros da política externa a chamada “real politique” não imperasse. Esse sempre foi o grande problema da abordagem dos países de expressão oficial portuguesa, em que a herança cultural portuguesa não tem hoje muito para oferecer a não ser um veículo de transmissão mais rápido para o relacionamento com a União Europeia. Isso explica, por exemplo, as contínuas dificuldades por que passa S. Tomé e Príncipe ou a Guiné Bissau, sem que à pressuposta influência cultural portuguesa corresponda uma ajuda concreta, expressiva e capaz de ajudar aqueles países a atingir um limiar de desenvolvimento, a partir do qual possam se efetivamente responsabilizados pelo seu próprio rumo.

Por isso, sem ignorar a vasta reação de gente respeitável que se atirou a Lula tirando desforço de coisas antigas, onde por exemplo captei um tweet estúpido da incontinente verbal Ana Gomes a sugerir que o Lula estará lélé, percebi que não estava sozinho nessa interpretação e que outra gente apareceu a denunciar a pretensão saloia dos que pensaram que a visita de Lula a Portugal era uma oportunidade de catequizar o presidente brasileiro (as declarações da nossa Ministra da Defesa são patéticas e reveladoras do suprassumo dessa posição).

A crónica de CFA na revista do Expresso de hoje, prenunciada pela sua intervenção ontem no Eixo do Mal, onde DO e CFA estiveram mais próximos, confrontando-se com PML e LPN, é uma verdadeira lição de “real politik”, que deveria ser lida com atenção e que evidencia um larguíssimo conhecimento sobre a geopolítica mundial de hoje. O mundo ocidental tem andado distraído quanto à fortíssima presença da China em África, Ásia (ainda há dias uma grande reportagem sobre o Sri Lanka mostrava a relevância da China no financiamento e fornecimento de tecnologia à grande infraestrutura portuária de Colombo) e muito provavelmente no futuro imediato na América Latina. A presença da China é claramente de outra natureza quando comparada com a da Rússia. Esta última tem uma matriz militar de grande porte e os movimentos que estão no poder nesses países agradecem a cumplicidade. A presença da China é mais insinuante, concretizando-se através do financiamento, da tecnologia e da ajuda in loco em matéria de infraestruturas. Assim, questões de proximidade ou distância face ao conflito na Ucrânia e de reorganização das influências no financiamento e ajuda internacionais vêm ditando um significativo estreitamento da influência ocidental, leia-se sobretudo americana, já que a União Europeia continua a debater-se com o seu estatuto de parente pobre e pouco influente nas decisões da família ocidental.

A crónica de CFA é impiedosa relativamente às vicissitudes da política externa europeia, a qual, por exemplo, não conseguiu esconder o fracasso flagrante que resulta da Polónia, Eslováquia e Hungria se terem recusado a receber trigo proveniente da Ucrânia, invocando para isso a importância do seu eleitorado rural. Aliás, podemos colocar a interrogação de saber se a União Europeia não é ela própria um exercício requintado de “real politik”. Afinal, tanta solidariedade na proximidade das fronteiras com a Ucrânia e, ainda assim, a incómoda presença do nacionalismo numa questão aparentemente sem grande impacto, como a dos cereais.

Tenho andado atento ao pensamento que vai sendo publicado em alguns think-tanks americanos, no sentido de tomar o pulso à inteligência americana. No último número da Foreign Affairs, revista do Council on Foreign Relations dos EUA, revista portanto bastante próxima do pensamento que circula nos corredores de Washington, encontrei um artigo de Richard Haass e de Charles Kupchan, designado de “The West needs a new strategy in Ukrain”(2), em que se assinala um plano para assegurar a transição do palco da batalha para a mesa de negociações. Este think-tank não pode ser seguramente acusado de proximidade ao Kremlin ou ao PCP, por isso tem interesse, quando afirma que: “O Ocidente necessita de uma abordagem que reconheça essas realidades (as do rumo da guerra e da devastação) sem sacrificar os seus princípios. O melhor caminho é uma estratégia com duas pontas sequenciais que visa primeiro reforçar a capacidade militar e depois quando o conflito se atenuar mais para o fim do ano tentando retirar Moscovo e Kiev do espaço de guerra e aproximá-los da mesa de negociações. (…) A segunda ponta desta estratégia Ocidental consistirá mais para o fim do ano em lançar um plano de cessar fogo e seguir um processo de paz que vise terminar definitivamente o conflito”. Obviamente que persiste a discussão da exequibilidade de uma abordagem deste tipo, sobretudo a escolha rigorosa do momento de evolução do cenário de guerra e devastação para ensaiar a oportunidade. E o artigo não fica por aqui, pois identifica a falta de sabedoria repartida em insistir numa vitória militar total da Ucrânia e não deixa de analisar os riscos estratégicos de redução da capacidade de resposta militar rápida do Ocidente em função dos investimentos e fornecimentos que têm sido realizados. Por todos estes motivos, o artigo da Foreign Affairs é também um arrojado exercício de real politik, que deve ser considerado para memória futura.

Até lá, os cidadãos europeus mais combativos continuarão num cenário que é ainda de experiência algo longínqua face à devastação e ao sacrifício dos Ucranianos e com os EUA como guarda-costas, reclamando o primado dos valores e defendendo a continuidade do conflito. Claro que, quando os interesses nacionais forem atingidos, como no caso flagrante da Polónia, Eslováquia e Hungria, de novo a real politik suplantará a lógica dos valores e regressaremos aos equilíbrios piruetas em que a União Europeia é fértil.

É por estas razões que a crónica de hoje da CFA é um verdadeiro manual para alimentarmos uma visão um pouco mais objetiva e menos apaixonada do que se segue a uma invasão indecorosa. E talvez nos ajude a situar a visita de Lula no seu verdadeiro contexto.

(1) https://interesseseaccao.blogspot.com/2023/04/lula-e-as-hipocrisias-da-politica.html

(2) https://www.foreignaffairs.com/ukraine/russia-richard-haass-west-battlefield-negotiations?utm_medium=newsletters&utm_source=twofa&utm_campaign=The%20West%20Needs%20a%20New%20Strategy%20in%20Ukraine&utm_content=20230414&utm_term=FA%20This%20Week%20-%20112017

 

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