domingo, 2 de abril de 2023

MACRONADA

 


(A sociedade francesa vive já há longo tempo numa grande tensão. À esquerda, assistimos a uma profunda radicalização, com o movimento a França Insubmissa de Mélenchon a ocupar o espaço central, depois da decomposição praticamente até à irrelevância do Partido Socialista Francês e do Partido Comunista. À direita, a radicalização também imperou, a ponto do movimento de Madame Le Pen fazer por vezes a figura de partido do sistema, tamanha é a aleivosia de outras forças ainda mais radicais. No meio disto tudo, o movimento de Macron, cada vez mais partido e por isso dificilmente transformável num partido motor da sociedade francesa, canibalizou o centro democrático e os próprios Republicanos passam nestes dias por um mau bocado. É neste contexto tenebroso, que pode mudar radicalmente o papel da França na construção europeia, que a sociedade francesa está de novo a ferro e fogo, com a reação anárquico-violenta que a passagem da idade da reforma de 62 para 64 anos decidida por Macron suscitou.)

Face à violência e dimensão generalizada dos protestos, pode dizer-se que face a este novo contexto o movimento dos Gilets Jaunes, que se deixou posteriormente infiltrar por diferentes formas de radicalismo, poderia ser considerado hoje um movimento bem mais gerível do que aquele que tem por estes dias virado a sociedade francesa de pernas para o ar.

Regresso a este tema, já que numa primeira leitura do problema e tendo em conta o que se passa nos restantes países da União Europeia em matéria de valores de pensões e de idade de reforma, poderia pensar-se que os Franceses não estão bons da cabeça. Mas por mais instrumentalização política a que estas manifestações violentas de repúdio possam estar submetidas, a violência e a dimensão do protesto terão que obedecer a algum racional e esse talvez nos esteja a escapar.

A primeira evidência é que a liderança de Macron nunca conseguiu estabelecer uma empatia popular. As ligações anteriores do Presidente francês ao mundo do sistema financeiro globalizado constituíram sempre uma espécie de ferrete do qual Macron nunca conseguiu libertar-se. Além disso, a sua formação política não tem nem história nem referências que permitam criar essa empatia histórica com a sociedade francesa. Macron é, assim, um caso típico de líder crucial para o equilíbrio e defesa do projeto europeu, mas tem sido totalmente incapaz de estabelecer uma ponte entre esses valores europeus e a política nacional. O que nos pode levar à estranha conclusão, formulada em modelo de dicotomia: ou o Presidente francês não revelou capacidade de exposição desses valores ou a sociedade francesa está por estes dias a marimbar-se para alguns dos valores que juntaram no passado gente ilustre e combatente da liberdade em torno do projeto europeu. Confesso que me interrogo sobre qual destas duas possibilidades descreve melhor a contradição de Macron.

A segunda evidência é a de Macron ter afunilado a discussão democrática da sua reforma, manejando um instrumento de natureza constitucional que o autorizou a legislar sobre a matéria do aumento da idade da reforma sem fazer passar a legislação pelo Parlamento francês. Daí a moção de censura ganha por Macron à justa que ajudou a incendiar ainda mais as manifestações a ganhar expressão e a aumentar a sua duração de presença na rua. E, o que talvez tenha passado ao lado da imprensa nacional, as manifestações percorreram praticamente toda a França.

A terceira evidência, essa para mim a que me gerou maior perplexidade, é o facto do aumento da idade da reforma decretado por Macron não ser defendido pela grande generalidade dos economistas franceses. Pelo que consegui apurar, a proposta de Macron, embora aparentemente justificada numa sociedade em que por cada reformado existem apenas 1,7 empregos ativos, numa tendência que não para de diminuir, está longe de resolver os grandes problemas estruturais do sistema de pensões em França que resulta da multiplicidade de cerca de 42 sistemas diferentes.

A quarta evidência relaciona-se com inúmeras desigualdades que o aumento da idade de reforma vai provocar sobretudo nas populações mais desfavorecidas e nas classes médias que começaram a trabalhar mais cedo e que, por isso, serão obrigadas a trabalhar muito mais anos para alcançar a sua reforma, penalizando também as mulheres que, além de pensões mais baixas, serem futuramente obrigadas a trabalhar mais para as alcançar. E, segundo o economista Patrick Artus, a medida de Macron só conseguirá aumentar a taxa de emprego num ponto percentual, o que não resolverá o enorme gap que a economia francesa apresenta face a outras economias, como por exemplo a alemã.

Quando lia o artigo da jornalista americana Madeleine Schwartz, hoje radicada em Paris, “Macron’s Bad Math” para a New York Review of Books, que tem a particularidade de recolher a opinião de alguns economistas franceses de renome sobre a matéria, confirmei que, tal como cá, a questão da sustentabilidade do sistema de pensões continua a ignorar olimpicamente o tema da produtividade.

E o que parece mais perturbador é o facto de uma medida que colocou a França em pé de guerra tudo indica que não resolverá o défice do sistema de pensões francês em 2030.

A coisa está preta para Macron.

New York Review of Books: 

https://www.nybooks.com/online/2023/03/26/macrons-bad-math-schwartz/


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