Estava eu na minha cíclica tarefa de folhear a imprensa semanal, quinzenal ou mensal em atraso quando me passa pelas mãos um jornal angolano (“Mercado”), saído de dentro do nosso “Jornal de Negócios” como se dele fosse uma separata. Na primeira página do dito, o José Manuel Cerqueira (JMC), velho colega e amigo dos bancos da Faculdade de Economia do Porto nos idos de 74/75 e anos imediatamente seguintes, depois reencontrado em Paris – lembro uma boa conversa ali num cafezinho do Beaubourg, mesmo em frente ao Pompidou – quando ambos por lá circulávamos na primeira metade dos 80 (ele em frequentes visitas a Bernard Schmitt na Universidade da Borgonha, eu entre Paris I e o CEPII) e, desde então, mais esparsamente em raras ocasiões festivas associadas a amigos comuns.
Ao que parece, e depois de uma carreira rica e variada (talvez também algo acidentada), o JMC desempenha atualmente uma função pública, a de vice-governador da província de Luanda para o Setor Económico. Mas a entrevista tinha por pretexto próximo a sua publicação de um novo livro sobre a economia angolana – que apresenta deste modo: “No livro, há duas vertentes, que é a análise da economia angolana, nos dois primeiros capítulos, e, depois, dou os conceitos teóricos que permitiram efetuar a análise económica. Penso que situei o discurso no debate das ideias no mundo da ciência económica. Penso que digo coisas que merecem alguma reflexão sobre o futuro económico de África no século XXI.”; acrescentando: “O livro dirige-se à nova geração de economistas, classe política, jornalistas e público em geral que gosta de estar informado. Tento dar um contributo à juventude, que lhe facilite os sonhos de ser felizes em África. De entrar na vida moderna sem ter que abandonar o país onde nasceram. Está nas mãos dela mudar a realidade onde vive.”
Pelas entrelinhas da entrevista perpassa o brilho intelectual do JMC, um dos mais estruturados pensadores de Economia que conheci. Não vou, obviamente, esmiuçar. Escolho, apenas, três das referências que me saltaram como mais comprovadoras do misto de solidez e capacidade de polemizar que é intrínseco à dita espessura do JMC:
· “Defendo uma taxa de câmbio flutuante, mas não sou o único a pensar assim. Penso que um dos principais problemas da nossa economia é a diferença entre a taxa de câmbio oficial e a do paralelo. Isto permite que haja pessoas a fazer arbitragem das duas taxas, porque têm acesso privilegiado às divisas e depois revendem-nas e fazem lucros fora de série, sem qualquer esforço, e sobretudo facilitam uma afetação de recursos não racional. No fundo, cria duas economias: uma que joga com uma taxa de câmbio oficial e outra paralela. A única maneira de acabar com isso é deixar a moeda flutuar. (...). Elas [as reservas internacionais líquidas] têm vindo a diminuir, porque, com o câmbio fixo, o Governo não consegue evitar desequilíbrios da balança de pagamentos. Por um lado, há uma acumulação de kwanzas, que ficam em ‘lista de espera’ para a compra de divisas; por outro, há uma pressão muito grande de importações que; à taxa de câmbio em vigor, não consegue realizar-se. Mas, se tivéssemos um câmbio flutuante, não teríamos tanta necessidade de reservas em divisas. As grandes necessidades que temos decorrem do facto de termos um câmbio fixo. Portanto, quando há um desequilíbrio na balança de pagamentos, temos de recorrer imediatamente às divisas.”
· “Contrariamente à opinião a que chamo de ‘narrativa dominante’, a essa quebra abrupta do preço [do petróleo] não provocou apenas uma desaceleração económica. Houve uma recessão muito pronunciada da nossa economia. Hoje, pode estar a crescer devagarinho, mas depois de ter dado um ‘tombo’ enorme. (...). Estamos a sair da recessão muito lentamente, mas não estamos a impedir que o rendimento per capita desça. Angola tem uma taxa de natalidade bastante forte. Tende a diminuir, mas crescer a 2% não é suficiente para que o per capita suba. Nesta fase, Angola deveria estar a crescer a dois dígitos.”
· “Penso que, nos próximos cinco a sete anos, a economia pode crescer 12% a 14%, mesmo partindo de um nível de produtividade de trabalho e de aproveitamento de minérios muito baixos. Estes dois fatores e o progresso técnico podem ser incrementados numa economia pouco desenvolvida. Se forem levantados os condicionalismos ao investimento privado, podemos entrar num período em que a economia cresça a dois dígitos e, depois, venha a decrescer novamente, num período de estabilidade, à volta de 6%, 7% e 8%, como vinha a crescer antes da queda abrupta do preço do petróleo, e que poderá durar 10 a 20 anos. (...). O que Angola precisa é de mais investimento privado. O Governo condicionaria o investimento público às áreas soberanas – Exército, Policia e Diplomacia – e, a nível interior, à saúde, educação, água e transportes públicos. O País também precisa de se abrir ao investimento direto estrangeiro (IDE), em vez de ser mútuo. Ou seja, o Governo contrai dívida para efetuar investimentos públicos por via de linhas de crédito. A contrapartida disto seria facilitar o investimento estrangeiro. Há muitas restrições em Angola…”
Os anos passam, a vida corre, as pessoas que contam não mudam senão ao sabor das suas circunstâncias. Gostei muito de reencontrar o JMC, mesmo que ao longe e em termos descontextualizados. Desejo-lhe o melhor – fica bem, Zé Manel!
Sem comentários:
Enviar um comentário