segunda-feira, 23 de outubro de 2017

NA PENA DE UM OUTRO JAVIER, MARÍAS DE SEU NOME





Gosto da prosa de Javier Marías. Não manda dizer por outrem o que tem de ser dito. Um excerto sobre a arte da vitimização dissimulada em que alguns dirigentes da Omnium e da ANC são verdadeiros experts ou atores para um palco de papalvos:

“(…) Não, as maiores ofensas têm-nas produzido contra o mundo, tanto do presente como do passado e aconteceram através da banalização constante de palavras de peso, sérias, que não se podem utilizar de modo ligeiro sem cometer uma afronta. Um país com autogoverno maior do que qualquer outro equivalente europeu ou americano (maior que o dos Länder alemães ou dos Estados dos EUA), que há quase quatro décadas vota livremente, cuja língua é protegida e que não tem o mínimo obstáculo; que é um dos mais prósperos do continente, onde há e onde sempre houve liberdade de expressão e de defesa de quaisquer ideias, em que vive ou vivia em paz e com comodidade; elogiado e admirado com justiça pelo resto do planeta, com cidades e povoações extraordinários e uma tradição cultural deslumbrante …; bom, os seus governantes e os seus fanáticos vociferam queixosamente “Visca Catalunya lliure!” e acenando com cartazes com o lema “Freedom for Catalonia”. Defendem que vivem “oprimidos”, “ocupados” e “humilhados” e apelam incessantemente à “democracia”, enquanto saltam com piruetas por cima dela e querem com ela acabar na sua “república” sem dissidentes, com juízes nomeados e controlados pelos políticos, com a liberdade de imprensa exaurida senão suprimida, assinalando e denunciando os “não afetos” e os “tíbios” (termos que o franquismo então utilizava nas suas depurações insaciáveis). Que se permitem de chamar “fascistas” a gente como Joan Manuel Serrat e a Isabel Coixet e a mais de meia Catalunha, ou “traidor” ou “renegado” a Juan Marsé. Ninguém deveria sentir amargura nem sentir-se abatido por isso: é como se as hostes de Mussolini lhes chamassem “fascistas”. Imaginem o valor desse insulto nos lábios dos que hoje o pronunciam.

A grande ofensa é contra aqueles que estão oprimidos e privados de liberdade, contra aqueles que nunca desfrutaram de um átomo de democracia que fosse nas suas vidas e que nunca votaram. Para começar contra todos os espanhóis que vivemos e padecemos com o franquismo, debaixo do qual não havia partidos políticos nem nenhuma liberdade de expressão e um estudante podia passar dois anos de cadeia por distribuir folhetos; um sindicalista. Não apenas os catalães o suportaram, mas também muitos outros concidadãos. É uma ofensa contra as populações do Iraque e da Síria que estão ou estiveram sob o domínio do Daesh, isso sim é opressão e humilhação sem comparação. Contra as mulheres sauditas e de outros países muçulmanos em que são desprovidas de direitos e vivem convertidas em menores de idade ou em escravas conjugais. Contra os cubanos que não puderam votar cerca de seis décadas; contra os chilenos e argentinos submetidos às suas ditaduras militares, quando a gente “desaparecia” e era torturada.  Falar dos “métodos de tortura” da polícia no 1-O, como o fez com desfaçatez e com mentira completa Anna Gabriel é uma ofensa incomensurável a quantos sofrem e sofreram verdadeiras torturas neste mundo.”
Javier Marías, El País Semanal, 22 de outubro de 2017 (link aqui)

Palavras duras, mas necessárias, para denunciar trampolineiros, artífices da vitimização dissimulada, que para mim não são independentistas de boa-fé, que os há e muitos.

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