(A política
portuguesa é fértil nas artes virtuais de criar estadistas de largo estofo sem
que nada anteriormente o recomendasse, assim é com a saída de cena de Passos Coelho…)
Vai por aí um alarido
sobre a saída de cena de Passos Coelho. Pressupostamente, o país terá perdido,
transitoriamente pensam tais mentes, um estadista de grande alcance. Mas o
sentimento de orfandade tem explicações de outra natureza, sobretudo a partir
do momento em que pelas tomadas de posição de possíveis candidatos à sucessão,
com sucessivas desistências, compreendem que quem virá a seguir não é da mesma
pinta.
Donde provém então a
orfandade?
Passos Coelho e o grupo
de ideólogos (também desaparecidos da circulação com o choque de governação que
tiveram com a realidade) que o rodearam assumiram posições de governação que
muitos desses órfãos de hoje só têm coragem de assumir por interposta pessoa. Une-os
a ideia de que Portugal é uma sociedade arcaica e que é necessário destruir a
todo o custo todos esses arcaísmos, fazer da sociedade portuguesa tábua rasa,
remetendo todos os custos dessa destruição para danos colaterais, justificáveis
à luz dos fins a atingir. Funcionários públicos, leis laborais demasiado
protetoras dos direitos dos trabalhadores, políticas sociais demasiado
generosas, construção civil e todo um imaginário de outros resquícios
considerados arcaísmos a abater.
Muito dificilmente
haverá outra situação mais favorável para esta razia do que as condições
impostas pelo ajustamento financeiro à economia portuguesa. A pretensa força do
argumento do ter de ser tem que ver com esta realidade. O ambiente de
bancarrota que se criou produzia a narrativa adequada. Era preciso disciplinar
os indisciplinados, reverter os consumos desproporcionados, vergar os
interesses estabelecidos. E os alegados problemas do mestre de tal período com
a lei (José Sócrates) ainda reforçavam a narrativa. Sem ajustamento e imposição
externa de credores, as condições políticas que seriam necessárias criar para
que tais vozes tivessem poder não existiam. Era a grande oportunidade. Mas o
choque com a realidade é um aborrecimento. As transições e as transformações
não se concretizam em abstrato, mas com contextos e pessoas concretos. As
grandes manifestações da TSU foram um aviso. Esta gente teve um choque de
governação. Ainda conseguiu pintar uma saída limpa para completar a narrativa.
Mas rapidamente se percebeu que foi demasiado atamancada, colada com cuspe. Daí
ao estado de negação foi um ápice. Curiosamente, grande parte desta gente
acreditou, a norte, que Álvaro Almeida poderia ser no Porto um balão de ensaio,
alguns por solidariedade geracional. Mas o choque com a realidade é sempre
terrível.
Com Passos Coelho de
saída, não a rondar por aí, mas fiel a alguns destes compromissos, o sentimento
de orfandade talvez ainda admita que o personagem poderá voltar a prazo. Mas a
orfandade está instalada principalmente porque estão a chegar à conclusão que o
“passismo” é afinal quase uma miragem.
Dos nomes que ainda não desistiram, Rio e Santana Lopes, não correspondem nem
de longe nem de perto ao que eles imaginam ser necessário para suportar e
passar por cima dos tais danos colaterais. Os “liberalóides” estão hoje praticamente acantonados nas colunas do
Observador. Mesmo do lado empresarial, retirando talvez Pedro Ferraz da Costa,
que já fará parte do mobiliário do associativismo empresarial, há muito poucos
que aceitem identificar-se com essa falta de consideração ou insensibilidade
para com os tais danos colaterais da transição para uma sociedade sem arcaísmos.
Até o homem do Pingo Doce dinamiza uma Fundação que discute a desigualdade. O
país não os entende. Correm, por isso, o risco de se transformarem numa cultura
de contrapoder, à margem da governação. Profundamente infelizes vão destilar a
frustração pela amargura das suas crónicas.
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