sábado, 7 de outubro de 2017

TÃO ORFÃOS QUE ELES ESTÃO …




(A política portuguesa é fértil nas artes virtuais de criar estadistas de largo estofo sem que nada anteriormente o recomendasse, assim é com a saída de cena de Passos Coelho…)

Vai por aí um alarido sobre a saída de cena de Passos Coelho. Pressupostamente, o país terá perdido, transitoriamente pensam tais mentes, um estadista de grande alcance. Mas o sentimento de orfandade tem explicações de outra natureza, sobretudo a partir do momento em que pelas tomadas de posição de possíveis candidatos à sucessão, com sucessivas desistências, compreendem que quem virá a seguir não é da mesma pinta.

Donde provém então a orfandade?

Passos Coelho e o grupo de ideólogos (também desaparecidos da circulação com o choque de governação que tiveram com a realidade) que o rodearam assumiram posições de governação que muitos desses órfãos de hoje só têm coragem de assumir por interposta pessoa. Une-os a ideia de que Portugal é uma sociedade arcaica e que é necessário destruir a todo o custo todos esses arcaísmos, fazer da sociedade portuguesa tábua rasa, remetendo todos os custos dessa destruição para danos colaterais, justificáveis à luz dos fins a atingir. Funcionários públicos, leis laborais demasiado protetoras dos direitos dos trabalhadores, políticas sociais demasiado generosas, construção civil e todo um imaginário de outros resquícios considerados arcaísmos a abater.

Muito dificilmente haverá outra situação mais favorável para esta razia do que as condições impostas pelo ajustamento financeiro à economia portuguesa. A pretensa força do argumento do ter de ser tem que ver com esta realidade. O ambiente de bancarrota que se criou produzia a narrativa adequada. Era preciso disciplinar os indisciplinados, reverter os consumos desproporcionados, vergar os interesses estabelecidos. E os alegados problemas do mestre de tal período com a lei (José Sócrates) ainda reforçavam a narrativa. Sem ajustamento e imposição externa de credores, as condições políticas que seriam necessárias criar para que tais vozes tivessem poder não existiam. Era a grande oportunidade. Mas o choque com a realidade é um aborrecimento. As transições e as transformações não se concretizam em abstrato, mas com contextos e pessoas concretos. As grandes manifestações da TSU foram um aviso. Esta gente teve um choque de governação. Ainda conseguiu pintar uma saída limpa para completar a narrativa. Mas rapidamente se percebeu que foi demasiado atamancada, colada com cuspe. Daí ao estado de negação foi um ápice. Curiosamente, grande parte desta gente acreditou, a norte, que Álvaro Almeida poderia ser no Porto um balão de ensaio, alguns por solidariedade geracional. Mas o choque com a realidade é sempre terrível.

Com Passos Coelho de saída, não a rondar por aí, mas fiel a alguns destes compromissos, o sentimento de orfandade talvez ainda admita que o personagem poderá voltar a prazo. Mas a orfandade está instalada principalmente porque estão a chegar à conclusão que o “passismo” é afinal quase uma miragem. Dos nomes que ainda não desistiram, Rio e Santana Lopes, não correspondem nem de longe nem de perto ao que eles imaginam ser necessário para suportar e passar por cima dos tais danos colaterais. Os “liberalóides” estão hoje praticamente acantonados nas colunas do Observador. Mesmo do lado empresarial, retirando talvez Pedro Ferraz da Costa, que já fará parte do mobiliário do associativismo empresarial, há muito poucos que aceitem identificar-se com essa falta de consideração ou insensibilidade para com os tais danos colaterais da transição para uma sociedade sem arcaísmos. Até o homem do Pingo Doce dinamiza uma Fundação que discute a desigualdade. O país não os entende. Correm, por isso, o risco de se transformarem numa cultura de contrapoder, à margem da governação. Profundamente infelizes vão destilar a frustração pela amargura das suas crónicas.


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