(Algumas
reflexões sobre as dimensões do caso Marquês que interessam ao âmbito do
Interesse Privado, Ação Pública; a matéria mais relevante parece ser a de saber se é todo um período do
regime democrático que vai ser julgado ou se apenas alguns desvios…)
Os Portugueses usam uma
saudação de despedimento, “continuação”, que sempre me intrigou, por
sinceramente não conseguir encontrar um conteúdo para a mesma. Fica-se sem
saber se ela equivale a um “fica bem”
ou se, pelo contrário, a expressão representa a inércia, o imobilismo que por
vezes atavicamente nos caracteriza.
Por razões que talvez
uma boa sessão de análise identificaria, foi esta expressão de saudação que me
ocorreu para designar a invocação do caso Marquês do ponto de vista do âmbito
do Interesse Privado, Ação Pública.
Por mais reservas que
possamos colocar à consistência de algumas das vertentes da pesada acusação que
o dossier Marquês representa, a sua
magnitude é demasiada para não estabelecermos possíveis ligações entre a sua
ocorrência e alguns traços dominantes do modelo económico que nos conduziria ao
resgate de 2011 (a tal crise sobreposta que se abateu sobre a economia
portuguesa). A ilusão de uma empresa global, a perigosa convivência entre a
sofisticada financeirização da economia e o tecido empresarial, a captura do
interesse público por alguns agentes privados, a “offshorização de dinheiro com origens pouco claras, a débil corporate governance de algumas empresas
aceite por acionistas interessados em lucros fáceis e generosas distribuições
de dividendos, a sedução dos não transacionáveis de rendibilidades apetecíveis
e abrigadas da concorrência internacional são alguns desses traços. Muitos
destes traços passeiam-se pelos materiais coligidos pela acusação. O cidadão
minimamente atento intui que, apesar de uma carga fiscal fortemente concentrada
num grupo reduzido de contribuintes (cerca de 10% dos cidadãos fiscais geram
70% da receita fiscal), a sociedade portuguesa dava sinais de uma circulação monetária
e de padrões de consumo que revelavam a existência de rendimento fora da equação
“10% pagam 70%”.
Ressalvada a necessidade
da defesa poder contar com condições de trabalhos justas, o desfecho do caso
mostrará se a sociedade portuguesa e as suas instituições revelam maturidade suficiente
para combater estes traços indesejáveis do nosso modelo económico.
Pelo que anda no ar após
o conhecimento da acusação, não é difícil perceber que os próximos tempos de
instrução e/ou julgamento vão revelar uma luta de morte entre os argumentos da prova
direta e da prova indireta de muitas das acusações sobre as quais está
instalada uma ideia de forte plausibilidade. Essa plausibilidade já foi ganha
pela acusação na opinião pública e na comunicação social. Sócrates e outros
acusados vão agarrar-se desesperadamente ao mundo das provas diretas. Mas todos
sabemos que se estes processos estivessem limitados ou a esse tipo de provas ou
à confissão então não veria nunca condenados. Mas também sabemos que nas provas
indiretas há vários graus de plausibilidade. A magistratura portuguesa tem neste
processo uma rara oportunidade de afirmação e de ganho de respeitabilidade
junto de uma população ávida de acreditar em alguma coisa de sólido e
consistente. Condenações por simples convicção e invocação desmesurada das condições
de plausibilidade não permitirão essa respeitabilidade. Mas condenações equilibradas
nessa matéria mostrarão aos cidadãos nacionais que há limites à impunidade.
Por isso, afasto a ideia
de que é o regime democrático e todo o modelo empresarial nacional que estarão
em instrução ou julgamento. Estarão apenas em juízo alguns desvios, fortes mas
não identificáveis com o universo. E a capacidade de lidar e combater esses desvios
é uma prova de saúde das instituições.
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