domingo, 15 de outubro de 2017

CONTINUAÇÃO!




(Algumas reflexões sobre as dimensões do caso Marquês que interessam ao âmbito do Interesse Privado, Ação Pública; a matéria mais relevante parece ser a de saber se é todo um período do regime democrático que vai ser julgado ou se apenas alguns desvios…)

Os Portugueses usam uma saudação de despedimento, “continuação”, que sempre me intrigou, por sinceramente não conseguir encontrar um conteúdo para a mesma. Fica-se sem saber se ela equivale a um “fica bem” ou se, pelo contrário, a expressão representa a inércia, o imobilismo que por vezes atavicamente nos caracteriza.

Por razões que talvez uma boa sessão de análise identificaria, foi esta expressão de saudação que me ocorreu para designar a invocação do caso Marquês do ponto de vista do âmbito do Interesse Privado, Ação Pública.

Por mais reservas que possamos colocar à consistência de algumas das vertentes da pesada acusação que o dossier Marquês representa, a sua magnitude é demasiada para não estabelecermos possíveis ligações entre a sua ocorrência e alguns traços dominantes do modelo económico que nos conduziria ao resgate de 2011 (a tal crise sobreposta que se abateu sobre a economia portuguesa). A ilusão de uma empresa global, a perigosa convivência entre a sofisticada financeirização da economia e o tecido empresarial, a captura do interesse público por alguns agentes privados, a “offshorização de dinheiro com origens pouco claras, a débil corporate governance de algumas empresas aceite por acionistas interessados em lucros fáceis e generosas distribuições de dividendos, a sedução dos não transacionáveis de rendibilidades apetecíveis e abrigadas da concorrência internacional são alguns desses traços. Muitos destes traços passeiam-se pelos materiais coligidos pela acusação. O cidadão minimamente atento intui que, apesar de uma carga fiscal fortemente concentrada num grupo reduzido de contribuintes (cerca de 10% dos cidadãos fiscais geram 70% da receita fiscal), a sociedade portuguesa dava sinais de uma circulação monetária e de padrões de consumo que revelavam a existência de rendimento fora da equação “10% pagam 70%”.

Ressalvada a necessidade da defesa poder contar com condições de trabalhos justas, o desfecho do caso mostrará se a sociedade portuguesa e as suas instituições revelam maturidade suficiente para combater estes traços indesejáveis do nosso modelo económico.

Pelo que anda no ar após o conhecimento da acusação, não é difícil perceber que os próximos tempos de instrução e/ou julgamento vão revelar uma luta de morte entre os argumentos da prova direta e da prova indireta de muitas das acusações sobre as quais está instalada uma ideia de forte plausibilidade. Essa plausibilidade já foi ganha pela acusação na opinião pública e na comunicação social. Sócrates e outros acusados vão agarrar-se desesperadamente ao mundo das provas diretas. Mas todos sabemos que se estes processos estivessem limitados ou a esse tipo de provas ou à confissão então não veria nunca condenados. Mas também sabemos que nas provas indiretas há vários graus de plausibilidade. A magistratura portuguesa tem neste processo uma rara oportunidade de afirmação e de ganho de respeitabilidade junto de uma população ávida de acreditar em alguma coisa de sólido e consistente. Condenações por simples convicção e invocação desmesurada das condições de plausibilidade não permitirão essa respeitabilidade. Mas condenações equilibradas nessa matéria mostrarão aos cidadãos nacionais que há limites à impunidade.

Por isso, afasto a ideia de que é o regime democrático e todo o modelo empresarial nacional que estarão em instrução ou julgamento. Estarão apenas em juízo alguns desvios, fortes mas não identificáveis com o universo. E a capacidade de lidar e combater esses desvios é uma prova de saúde das instituições.

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