Os tempos de tragédia que
vivemos são paradoxais. Paulatina mas todos esperamos que sustentadamente, o país
está praticamente há dois anos a recuperar rendimento real, expressão que é
mais feliz do que a muito divulgada política de reposição de rendimentos. Processo
legítimo, tão mais legítimo quanto mais hoje se compreende que os cortes de rendimentos
foram mais elevados do que teria sido necessário, essencialmente porque o processos
de ajustamento não teve em devida conta o adverso contexto internacional em que
iria ser aplicado. Podemos questionar se esse processo de recuperação de
rendimento real está a ser suficientemente generalizado a toda a sociedade. Por
exemplo, se não deveríamos estar mais atentos à recuperação do rendimento real
dos mais jovens e não apenas concentrados na administração pública. De acordo.
Simultaneamente, em
grande medida como consequência da tese do estado mínimo que, recorde-se, nunca
chegou a ser validada em eleições democráticas, os portugueses compreenderam
que afinal o Estado era mais vulnerável e estruturalmente frágil do que nos
tinham feito crer. Isto não significa que essa fragilidade não se destaque num
contexto de grande heterogeneidade de situações de qualidade de prestação de
serviços públicos. Há de facto algumas dimensões da presença do Estado que
podem considerar-se à altura dos padrões europeus, outras porém revelam a tal fragilidade
incómoda. As maiores fragilidades saltam à vista sobretudo quando se
territorializa a presença desse Estado. Os que vivem nas áreas de maior
concentração urbana podem queixar-se de filas de espera e de outros problemas,
mas não imaginam a fragilidade de serviços públicos noutros territórios menos
densos. A trágica emergência dos incêndios florestais na cena política foi a ignição
que faltava para que essa consciência não se limitasse aos que têm de com ela
conviver no dia-a-dia das suas vidas. Já não é possível escondê-la. A sua emergência
foi demasiado trágica para ser ignorada e os que como eu têm em termos
profissionais de conviver com questões como a atração de gentes e de investimento
ao interior devem futuramente rever o corpo de variáveis de atração e de política
para a concretizar.
Não por acaso, mas em
meu entender simbolicamente, as forças políticas que se têm empenhado, legitimamente
repito, na recuperação do rendimento real apressaram-se a expressar a ideia de
que o preenchimento dos buracos revelados nos serviços públicos às populações
nas suas dimensões mais básicas não deveria ser colmatado à custa do processo
de recuperação do rendimento real. Jerónimo de Sousa com a sua simplicidade
tornou-se o campeão desta tese com a célebre interrogação, “expliquem-me qual a
diferença de um défice público de 1% do PIB para 1,2% dedicado à tal
requalificação do serviço público.
Aparentemente, a
simplicidade de Jerónimo é cativante. Por que razão a recuperação do rendimento
real tem de conflituar com mais investimento público de regeneração da qualidade
do serviço a prestar às populações?
Mas a equação é mais
complexa do que uma leitura apressada da simplicidade de Jerónimo pode fazer parecer.
A equação não é dual, mas implica pelo menos uma triangulação. O nível das
remunerações reais dos Portugueses e a qualidade e cobertura dos serviços públicos
não têm necessariamente de ser trabalhadas à luz de um Estado mínimo. Podemos rejeitar
essa tentação, como eu a rejeito frontalmente. Mas não podemos ignorar a variável
da capacidade de gerar desenvolvimento económico a partir de uma base produtiva
que é a nossa. E esta variável tem sido perigosamente escamoteada, o que parece
paradoxal em contexto de ressurgimento do crescimento económico.
Assim, toda a legítima
emoção suscitada pela vulnerabilidade revelada do interior sujeito a fogos
florestais tem-se substituído à perceção necessária de uma certeza. Ou as
condições produtivas de pelo menos as principais aglomerações desse interior são
revolucionadas com um esforço de grande magnitude de investimento e de atração
de nova capacidade produtiva ou o combate a essa fragilidade estrutural passará
obrigatoriamente por um processo redistributivo de grandes proporções, tendo
esses territórios como os destinatários. As escolhas são, por isso, mais
complexas: remunerações reais, qualidade e cobertura dos serviços públicos e
capacidade de geração de desenvolvimento económico fazem parte de uma triangulação
com múltiplos equilíbrios e interdependem entre si. Podemos, claro, estar fixar
um dos elementos dessa triangulação e discutir o que é necessário fazer nas outras
duas para conseguir um desses equilíbrios. Mas a verdade é que temos andado a
adiar esse encontro com a realidade. E há uma pergunta básica a fazer: o que é
que cada fonte de interesses legítimos em Portugal está disposta a fazer para
contribuir para resolução daquela equação?
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