domingo, 29 de outubro de 2017

A EQUAÇÃO IMPOSSÍVEL





Os tempos de tragédia que vivemos são paradoxais. Paulatina mas todos esperamos que sustentadamente, o país está praticamente há dois anos a recuperar rendimento real, expressão que é mais feliz do que a muito divulgada política de reposição de rendimentos. Processo legítimo, tão mais legítimo quanto mais hoje se compreende que os cortes de rendimentos foram mais elevados do que teria sido necessário, essencialmente porque o processos de ajustamento não teve em devida conta o adverso contexto internacional em que iria ser aplicado. Podemos questionar se esse processo de recuperação de rendimento real está a ser suficientemente generalizado a toda a sociedade. Por exemplo, se não deveríamos estar mais atentos à recuperação do rendimento real dos mais jovens e não apenas concentrados na administração pública. De acordo.

Simultaneamente, em grande medida como consequência da tese do estado mínimo que, recorde-se, nunca chegou a ser validada em eleições democráticas, os portugueses compreenderam que afinal o Estado era mais vulnerável e estruturalmente frágil do que nos tinham feito crer. Isto não significa que essa fragilidade não se destaque num contexto de grande heterogeneidade de situações de qualidade de prestação de serviços públicos. Há de facto algumas dimensões da presença do Estado que podem considerar-se à altura dos padrões europeus, outras porém revelam a tal fragilidade incómoda. As maiores fragilidades saltam à vista sobretudo quando se territorializa a presença desse Estado. Os que vivem nas áreas de maior concentração urbana podem queixar-se de filas de espera e de outros problemas, mas não imaginam a fragilidade de serviços públicos noutros territórios menos densos. A trágica emergência dos incêndios florestais na cena política foi a ignição que faltava para que essa consciência não se limitasse aos que têm de com ela conviver no dia-a-dia das suas vidas. Já não é possível escondê-la. A sua emergência foi demasiado trágica para ser ignorada e os que como eu têm em termos profissionais de conviver com questões como a atração de gentes e de investimento ao interior devem futuramente rever o corpo de variáveis de atração e de política para a concretizar.

Não por acaso, mas em meu entender simbolicamente, as forças políticas que se têm empenhado, legitimamente repito, na recuperação do rendimento real apressaram-se a expressar a ideia de que o preenchimento dos buracos revelados nos serviços públicos às populações nas suas dimensões mais básicas não deveria ser colmatado à custa do processo de recuperação do rendimento real. Jerónimo de Sousa com a sua simplicidade tornou-se o campeão desta tese com a célebre interrogação, “expliquem-me qual a diferença de um défice público de 1% do PIB para 1,2% dedicado à tal requalificação do serviço público.

Aparentemente, a simplicidade de Jerónimo é cativante. Por que razão a recuperação do rendimento real tem de conflituar com mais investimento público de regeneração da qualidade do serviço a prestar às populações?

Mas a equação é mais complexa do que uma leitura apressada da simplicidade de Jerónimo pode fazer parecer. A equação não é dual, mas implica pelo menos uma triangulação. O nível das remunerações reais dos Portugueses e a qualidade e cobertura dos serviços públicos não têm necessariamente de ser trabalhadas à luz de um Estado mínimo. Podemos rejeitar essa tentação, como eu a rejeito frontalmente. Mas não podemos ignorar a variável da capacidade de gerar desenvolvimento económico a partir de uma base produtiva que é a nossa. E esta variável tem sido perigosamente escamoteada, o que parece paradoxal em contexto de ressurgimento do crescimento económico.

Assim, toda a legítima emoção suscitada pela vulnerabilidade revelada do interior sujeito a fogos florestais tem-se substituído à perceção necessária de uma certeza. Ou as condições produtivas de pelo menos as principais aglomerações desse interior são revolucionadas com um esforço de grande magnitude de investimento e de atração de nova capacidade produtiva ou o combate a essa fragilidade estrutural passará obrigatoriamente por um processo redistributivo de grandes proporções, tendo esses territórios como os destinatários. As escolhas são, por isso, mais complexas: remunerações reais, qualidade e cobertura dos serviços públicos e capacidade de geração de desenvolvimento económico fazem parte de uma triangulação com múltiplos equilíbrios e interdependem entre si. Podemos, claro, estar fixar um dos elementos dessa triangulação e discutir o que é necessário fazer nas outras duas para conseguir um desses equilíbrios. Mas a verdade é que temos andado a adiar esse encontro com a realidade. E há uma pergunta básica a fazer: o que é que cada fonte de interesses legítimos em Portugal está disposta a fazer para contribuir para resolução daquela equação?

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