Se o tempo disponível
para a reflexão o permitir e nenhum outro tema se interpuser, o pós-Conselho de
Ministros de sábado passado traz-nos matéria muito relevante para compreender a
sociedade que somos.
Quanto a mim erradamente
e já não falo sequer da trágica antecipação que os acontecimentos de 15 e 16 de
outubro constituíram, o governo resolveu apostar tudo num Conselho de Ministros
Extraordinário para mudar a sua face de inépcia e descoordenação. Decidiu fazê-lo
em função do Relatório da Comissão Técnica Independente constituída no âmbito
da Assembleia da República. A relativa inação a que o Governo se votou até à
publicação do Relatório (já de si algo incompreensível na medida em que, não estando
em causa a qualidade do mesmo e da equipa que o elaborou) equivale ao Governo assinar
por baixo quanto à sua incapacidade de decidir algo de relevante no quadro da
sua própria ação governativa. Para mais, com a dimensão trágica dos
acontecimentos de 15 e 16 de outubro, o Relatório passou a representar uma espécie
de jangada para um Governo a naufragar e surpreendido pela tempestade. Assim, se
o Governo tinha erradamente aumentado as expectativas para o Conselho de Ministros
do passado sábado, com o novo contexto tais expectativas redobraram.
Duas reflexões intermédias.
Primeiro, não gosto de
ver governos e a sua ação política amarrados a um relatório técnico-científico.
Estou particularmente à vontade com esta afirmação, pois fui dos primeiros a
mencionar neste espaço a elevada qualidade do relatório e o seu significado reformador.
Mas um governo tem de ter autonomia política para ler criticamente um relatório
dessa natureza do ponto de vista dos desafios da governação. Porque se a não
tiver, então poderá reduzir substancialmente as tropas que o constituem e
poupar-nos uma massa significativa de remunerações ao erário público. Esse
tempo de maturação de conclusões e recomendações é crucial para assegurar
condições de implementação de medidas e orientações propostas. Por isso, ter
concentrado o jogo das expectativas nas medidas de um Conselho de Ministros pode
ser lido à luz da metáfora do lençol curto. Qualquer movimento implica que algo
fique a descoberto. Neste caso, aumentou a incredulidade quanto à inação de
quatro meses.
Segundo, alguma ação política,
e penso que António Costa não escapa a esse síndrome, pressupõe erradamente que
a intervenção em problemas complexos se resolve ou se despacha com um conjunto
de medidas “tout court”. Ignoram que,
frequentemente, é mais de uma alteração de processos que se trata. Acho que o vício
vem dos termos em que se mediatiza a ação governativa, vulgo a existência de um
número comunicacional. A alteração de processos e a consistência de uma nova prática
ao longo do tempo não são mediatizáveis.
Como já ando nestas
coisas há demasiado tempo, sei que por mais brilhante que seja uma reunião do
centro de racionalidade Conselho de Ministros (tão esperançoso que estou!) não é
o seu resultado imediato que interessa avaliar, mas o padrão consistente ou inconsistente
de intervenção que virá a seguir.
Estou, por isso, a
partir de sábado passado focado em seguir o pós. E o que tem emergido é
demasiado interessante para não ser objeto de reflexão neste espaço. Temos tido
de tudo. Reações corporativas que saltam em função dos resultados e recomendações
da Comissão Técnica Independente. Por exemplo, a abnegação e coragem dos
bombeiros portugueses já merecia uma liderança rejuvenescida para os nossos tempos
e não a bafienta continuidade de Jaime Mata Soares. Para além do remoque de ter
participado nos trabalhos da CTI, JMS consegue a proeza de não colocar a
abnegação e coragem dos bombeiros portugueses ao abrigo da suspeição, o que é obra
e justificaria por si só uma mudança de rosto de liderança. Mas também há gente
do foro técnico-científico que tendo participado nos trabalhos ou não tendo
neles participado decidiu mostrar-se e demonstrar que também tem opinião. Já
estava admirado que assim não fosse. Universitários e investigadores têm frequentemente
problemas de ego e perante um Governo que se agarrou desesperadamente ao relatório
aguçou o apetite de muita gente.
Mas no pós- Conselho de
Ministros emergiu um fenómeno surpreendente. Muita gente descobriu-se como
grande defensora e patrona do mundo rural. Até os assanhados do Observador, a
quem a tragédia permitiu recuperar do coma da saída de cena de Passos, vieram a
terreiro derramar lágrimas de crocodilo pelo mundo rural. Até também a muito pacífica
Professora Helena de Freitas, que se havia demitido da Unidade de Missão dedicada
à baixa densidade, regressou à ribalta para afinal concluir o que toda a gente
já tinha concluído há muito tempo, a falta de vontade política. Já há muito
tempo que não via tanta hipocrisia concentrada.
Pois é tema a que valerá
a pena regressar. O declínio do mundo rural é um processo estrutural em movimento
há muito tempo, decorrente de uma combinação viciosa e complexa entre declínio
demográfico, queda de densidade de empreendimento e dificuldade de concentrar
recursos numa política de atração de investimento e de emprego que atraia gente.
Praticamente todas as economias de mercado europeias têm vivido esse processo. A
única diferença é que na maioria dos países existe magnitude de recursos públicos
suficiente para redistribuir recursos.
Como o meu referencial nestas
matérias, Professor Oliveira Batista do Instituto Superior de Agronomia,
costuma dizer, a agricultura intensiva e fortemente capitalizada já há muito
perdeu os laços deterministas de ligação ao território. Para além de em termos
de emprego local deixar a desejar. As restantes atividades de que se anima o
mundo rural não sobrevivem numa lógica estrita de mercado. Neste contexto, o declínio
desse mundo rural só pode ser contido com um generoso esforço de investimento e
de fixação de serviços públicos geridos segundo uma lógica de menor atomização
e de maior cooperação necessária entre territórios. Claro que também há a
hipocrisia dos que querem preservar o mundo rural para uma perspetiva lúdica da
caça ou de outras atividades de coutada. A fragilidade destes territórios é
dramaticamente posta a nu com tragédias desta natureza. Mesmo nestas condições de
grande vulnerabilidade, os incêndios de 15 e 16 mostraram, por exemplo, que em
concelhos como Oliveira do Hospital, Oliveira de Frades e outros subsiste uma
economia industrial generosa em termos de resistência, que está hoje praticamente
destruída, mas com vontade de recomeçar.
Provavelmente, outras
hipocrisias virão a terreiro. Cá estaremos para as denunciar.
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