quarta-feira, 4 de outubro de 2017

RES (CALDO) CATALÃO

(Nicolás Aznárez)
(El Roto)



(Estou firmemente convencido que a evolução dos acontecimentos na Catalunha constitui uma ilustração definitiva da perigosa deriva que a mediatização da política está a provocar na democracia, com a ironia trágica de, hoje, a separação entre independentistas e não independentistas estar mais ténue em parte devido a essa deriva …)

Uma primeira nota ao jeito de conflito de interesses. Reconheço e acredito na identidade e singularidade catalã, embora a interpretação da história que os nacionalistas tanto prezam ser mais complexa do que parece. Abomino qualquer propósito de superioridade moral ou humana que essa forte identidade possa constituir face às outras Espanhas. Estou também convencido que o radicalismo “agit prop” que governa hoje a Catalunha não é gente que se recomende, tendo capturado uma larga parte do nacionalismo independentista e ameaça estender essa captura a franjas não independentistas. Também não tenho dúvidas de que essa captura foi largamente facilitada por dois fatores: a onda de corrupção que atravessou o nacionalismo catalão, enfraquecendo as forças tradicionais da Convergência e a inépcia governativa do PP, completada com o desnorte do PSOE relativamente à questão catalã (ainda não totalmente resolvida com a nova liderança de Pedro Sánchez).

Dito isto, o estado dos acontecimentos começou a traçar-se na madrugada do 1-O quando, objetivamente e na prática, o grupo da polícia Mossos de Esquadra (chefiada pelo tão mediático senhor Trapero emergido após o ataque terroristas das Ramblas) se recusou a operacionalizar a via preventiva para impedir o referendo, não desativando a totalidade dos núcleos de voto. Recordemos que a polícia Mossos de Esquadra é a polícia da autonomia mas não deixa por isso de estar inserida nas forças de segurança do Estado espanhol. Ao não viabilizar a via preventiva de cumprimento da decisão jurídico-constitucional de considerar o referendo ilegal, tenho para mim que essa decisão fez declaradamente parte da estratégia da Generalitat para virar a seu favor toda a mediatização do 1-0. Afinal, a partir do momento em que a ordem de desativação dos núcleos de voto até às seis da manhã não foi cumprida, cabia à polícia nacional e Guardia Civil (as polícias invasoras e opressoras na linguagem agit prop da Generalitat) a assegurar a ordem dada. Ninguém é ingénuo ao ponto de admitir que, nesse contexto de bonomia da polícia autonómica, a intervenção policial não pudesse descambar para formas gratuitas de violência. Cruzando todos os elementos de informação (real ou fabricada) que circulou, continuo convencido que a intervenção policial do 1-O não foi a desgraça que foi mediatizada e que tanto marcou alguma esquerda da nossa praça. Há exemplos e contraexemplos que justificam a minha convicção. A história global dos feridos está mal contada, já que há profundos desajustes entre a informação da Generalitat e dos hospitais de Barcelona (dois hospitalizados segundo Puigdemont em conferência de imprensa). Há imagens e contraimagens que também vão no sentido da minha convicção. Cargas reais misturadas com imagens de outros contextos e outras épocas.

Mas como dizia no meu post anterior, o radicalismo ganhou a batalha mediática dos efeitos do 1-0 e mostrou uma extrema agilidade e competência no domínio dessa mediatização. A “parada” massiva de ontem mostra objetivamente que assim aconteceu. O fosso entre os independentistas e o catalanismo não independentista ter-se-á reduzido.

Por isso, neste contexto, a falta de dinâmica política do PP, PSOE e CIUDADANOS para talhar esta situação e isolar o radicalismo que capturou a Generalitat é confrangedora.

Tal como hoje, no El País, o ex-líder do PSOE Alfredo Pérez Rubalcaba (link aqui) escreve, a recuperação da situação passa inevitavelmente pela conceção e votação democrática de uma reforma da constituição espanhola, completando e aprofundando o seu caráter federal parece ser a única saída viável. O independentismo terá ganho algum avanço na sociedade catalã nos últimos dias, mas tenho profundas dúvidas de que seja maioritário. O novo pacto de convivência de uma Espanha mais federal poderia, para além de aprofundar o sistema autonómico espanhol, permitiria ainda novas eleições na Catalunha para votar um novo estatuto que até poderia recuperar aspetos do Estatuto de 2006.

Tenho dúvidas de que a abertura desta via possa ser concretizada sem a bazuca do artigo 155º da atual constituição. Mas essa interrogação está a petrificar a contra-reação política aos acontecimentos do 1-O e a continuidade da mais que provável deriva de declaração unilateral da independência. PP, PSOE (pelas interpostas dificuldades dos socialistas catalães) e CIUDADANOS receiam ser trucidados em próximas eleições regionais. Mas não vejo alternativa. Rubalcalba fala de não contentar independentistas, mas antes de os conquistar democraticamente pela reforma constitucional e negociação de um novo pacto de convivência entre os espanhóis. Podemos considerá-lo ingénuo face ao avanço do radicalismo agit prop. Mas tem razão em considerar que a experiência recente do BREXIT mostra que a emoção populista tem dificuldades em concretizar decisões eleitorais. Afinal, o que são os 30 anos de vida europeia do Reino Unido comparados com séculos de presença catalã na Espanha, para mim das nações.

A lucidez de Francesc De Carreras espanta-me (link aqui):

“A questão é que com a divisão e afundamento da CiU e o desmoronamento do Partido Socialista Catalão (PSC), as instituições de Estado transformaram-se em presa cobiçada dos movimentos populistas, liderados pela CUP, com a sua componente libertária e as suas vanguardas dispostas a recorrer ao sinistro reportório de ação coletiva própria dos nazis, com os seus “assinalemo-los” e “barremo-los”, com a sua estratégia de rotura populista ou de dicotomização da esfera pública. Muito hábeis no manejo do poder, os dirigentes da CUP compreenderam em seguida o potencial de crescimento derivado da crise de representação que acompanhou a Grande Recessão e, depois de cercar os parlamentares nacionalistas, não tiveram dúvidas em proclamar que a autodeterminação dos povos é um princípio que transcende o marco de toda a legalidade. Transcender o marco da legalidade entrando nas instituições e mantendo a pressão nas ruas: esse é o princípio que guia todo o movimento populista na sua luta contra a democracia representativa”.

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