(Nicolás Aznárez)
(El Roto)
(Estou firmemente
convencido que a evolução dos acontecimentos na Catalunha constitui uma
ilustração definitiva da perigosa deriva que a mediatização da política está a
provocar na democracia, com
a ironia trágica de, hoje, a separação entre independentistas e não independentistas
estar mais ténue em parte devido a essa deriva …)
Uma primeira nota ao jeito de conflito de
interesses. Reconheço e acredito na identidade e singularidade catalã, embora a
interpretação da história que os nacionalistas tanto prezam ser mais complexa
do que parece. Abomino qualquer propósito de superioridade moral ou humana que
essa forte identidade possa constituir face às outras Espanhas. Estou também
convencido que o radicalismo “agit prop”
que governa hoje a Catalunha não é gente que se recomende, tendo capturado uma
larga parte do nacionalismo independentista e ameaça estender essa captura a
franjas não independentistas. Também não tenho dúvidas de que essa captura foi
largamente facilitada por dois fatores: a onda de corrupção que atravessou o
nacionalismo catalão, enfraquecendo as forças tradicionais da Convergência e a
inépcia governativa do PP, completada com o desnorte do PSOE relativamente à
questão catalã (ainda não totalmente resolvida com a nova liderança de Pedro Sánchez).
Dito isto, o estado dos acontecimentos
começou a traçar-se na madrugada do 1-O quando, objetivamente e na prática, o
grupo da polícia Mossos de Esquadra (chefiada pelo tão mediático senhor Trapero
emergido após o ataque terroristas das Ramblas) se recusou a operacionalizar a
via preventiva para impedir o referendo, não desativando a totalidade dos núcleos
de voto. Recordemos que a polícia Mossos de Esquadra é a polícia da autonomia mas
não deixa por isso de estar inserida nas forças de segurança do Estado espanhol.
Ao não viabilizar a via preventiva de cumprimento da decisão jurídico-constitucional
de considerar o referendo ilegal, tenho para mim que essa decisão fez declaradamente
parte da estratégia da Generalitat
para virar a seu favor toda a mediatização do 1-0. Afinal, a partir do momento
em que a ordem de desativação dos núcleos de voto até às seis da manhã não foi cumprida,
cabia à polícia nacional e Guardia Civil (as polícias invasoras e opressoras na
linguagem agit prop da Generalitat) a assegurar a ordem dada. Ninguém
é ingénuo ao ponto de admitir que, nesse contexto de bonomia da polícia autonómica,
a intervenção policial não pudesse descambar para formas gratuitas de violência.
Cruzando todos os elementos de informação (real ou fabricada) que circulou,
continuo convencido que a intervenção policial do 1-O não foi a desgraça que
foi mediatizada e que tanto marcou alguma esquerda da nossa praça. Há exemplos
e contraexemplos que justificam a minha convicção. A história global dos
feridos está mal contada, já que há profundos desajustes entre a informação da
Generalitat e dos hospitais de Barcelona (dois hospitalizados segundo Puigdemont
em conferência de imprensa). Há imagens e contraimagens que também vão no
sentido da minha convicção. Cargas reais misturadas com imagens de outros
contextos e outras épocas.
Mas como dizia no meu post anterior, o
radicalismo ganhou a batalha mediática dos efeitos do 1-0 e mostrou uma extrema
agilidade e competência no domínio dessa mediatização. A “parada” massiva de
ontem mostra objetivamente que assim aconteceu. O fosso entre os independentistas
e o catalanismo não independentista ter-se-á reduzido.
Por isso, neste contexto, a falta de dinâmica
política do PP, PSOE e CIUDADANOS para talhar esta situação e isolar o
radicalismo que capturou a Generalitat
é confrangedora.
Tal como hoje, no El País, o ex-líder do PSOE
Alfredo Pérez Rubalcaba (link aqui) escreve, a recuperação da situação passa inevitavelmente
pela conceção e votação democrática de uma reforma da constituição espanhola,
completando e aprofundando o seu caráter federal parece ser a única saída viável.
O independentismo terá ganho algum avanço na sociedade catalã nos últimos dias,
mas tenho profundas dúvidas de que seja maioritário. O novo pacto de convivência
de uma Espanha mais federal poderia, para além de aprofundar o sistema autonómico
espanhol, permitiria ainda novas eleições na Catalunha para votar um novo
estatuto que até poderia recuperar aspetos do Estatuto de 2006.
Tenho dúvidas de que a abertura desta via possa
ser concretizada sem a bazuca do artigo 155º da atual constituição. Mas essa
interrogação está a petrificar a contra-reação política aos acontecimentos do 1-O
e a continuidade da mais que provável deriva de declaração unilateral da
independência. PP, PSOE (pelas interpostas dificuldades dos socialistas catalães)
e CIUDADANOS receiam ser trucidados em próximas eleições regionais. Mas não
vejo alternativa. Rubalcalba fala de não contentar independentistas, mas antes
de os conquistar democraticamente pela reforma constitucional e negociação de
um novo pacto de convivência entre os espanhóis. Podemos considerá-lo ingénuo
face ao avanço do radicalismo agit prop.
Mas tem razão em considerar que a experiência recente do BREXIT mostra que a
emoção populista tem dificuldades em concretizar decisões eleitorais. Afinal, o
que são os 30 anos de vida europeia do Reino Unido comparados com séculos de presença catalã
na Espanha, para mim das nações.
A lucidez de Francesc De Carreras espanta-me (link aqui):
“A questão é que com a divisão e afundamento da CiU e o desmoronamento
do Partido Socialista Catalão (PSC), as instituições de Estado transformaram-se
em presa cobiçada dos movimentos populistas, liderados pela CUP, com a sua
componente libertária e as suas vanguardas dispostas a recorrer ao sinistro reportório
de ação coletiva própria dos nazis, com os seus “assinalemo-los” e “barremo-los”,
com a sua estratégia de rotura populista ou de dicotomização da esfera pública.
Muito hábeis no manejo do poder, os dirigentes da CUP compreenderam em seguida o
potencial de crescimento derivado da crise de representação que acompanhou a
Grande Recessão e, depois de cercar os parlamentares nacionalistas, não tiveram
dúvidas em proclamar que a autodeterminação dos povos é um princípio que transcende
o marco de toda a legalidade. Transcender o marco da legalidade entrando nas
instituições e mantendo a pressão nas ruas: esse é o princípio que guia todo o
movimento populista na sua luta contra a democracia representativa”.
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