sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O RELATÓRIO




(A confiança ilimitada que tenho na seriedade e integridade intelectual do Professor João Guerreiro e a leitura do relatório da Comissão Técnica Independente permitem-me concluir estar perante um dos mais relevantes contributos da sociedade civil e da inteligência nacional para um novo paradigma da gestão florestal e do combate aos incêndios rurais; a firmeza e consistência do relatório são apreciáveis e, embora não faça sangue como alguns pretenderiam, apresenta conclusões sobretudo em matéria de proteção civil bastante contundentes para o MAI…)

Como conflito de interesses a assinalar não posso deixar de referir que tenho um enorme apreço pela maneira de estar na Universidade e na vida pública do Professor João Guerreiro da Universidade do Algarve. Por isso, a sua coordenação da Comissão Técnica Independente assegura-me a máxima confiança e o relatório confirma essa confiança.

Dos meus relatos neste blogue dos fatídicos acontecimentos de Pedrogão, recordo essencialmente duas intuições que aqui manifestei. Primeiro, aquele abraço-desabafo do Secretário de Estado da Administração Interna ao Presidente Marcelo, manifestando toda a sua impotência perante uma situação que, por inépcia inicial, tinha fugido ao controlo das mais bem-intencionadas forças de intervenção, representou então para mim a perceção da tragédia que haveria de consumar-se. Segundo, apesar de serem evidentes inépcias e erros de avaliação estratégica de intervenção, os acontecimentos de Pedrogão devem-se em última instância a um estado de debilidade estrutural do país em certas matérias que os sucessivos governos, na ânsia de apresentar resultados imediatistas, têm remetido para baixo do tapete. Qualquer assomo de recuperação na conjuntura económica e no ritmo de crescimento económico é o combustível adequado para que os governos tendam a ignorar a tal debilidade estrutural em alguns domínios. O trágico da situação é que os políticos que remetem para baixo do tapete essas debilidades não sabem que estão a expor-se à fragilidade da sua ação governativa. Basta que um desses domínios saia descontroladamente para fora do tapete para que se compreenda que o poder da governação é nulo.

O relatório da Comissão Técnica Independente creio que me dá razão nas minhas intuições do momento.

Há três problemas centrais que o relatório identifica como profundamente danosos da magnitude dos efeitos de semana tão fatídica. Esses três problemas são problemas transversais da sociedade portuguesa que deveriam exigir maior persistência de intervenção e de alocação de recursos à sua resolução. Não são problemas que proporcionem power points sugestivos e reveladores da ação política. Mas estão aí à espera que lhe dediquemos a atenção devida.

Os três problemas são designados pelo relatório como insuficiências de conhecimento, défice de qualificações e problemas de governança. Como compreendo os autores do relatório!

O problema do conhecimento resume-se nesta constatação: o domínio dos incêndios florestais é atravessado por uma estranha incapacidade de aplicação de valioso conhecimento científico, internacionalmente prestigiado, que existe no país em diferentes domínios disciplinares. Partindo do princípio que défices similares de translação e aplicação de conhecimento científico foram ultrapassados noutras esferas da sociedade portuguesa, como explicar o atavismo reinante na questão floresta, aliás claramente presente na não preparação atempada de meios de combate, dado o conhecimento que existia sobre aquele momento no território de Pedrogão e concelhos limítrofes? Só a permanência de interesses não recomendáveis pode explicar a resistência à aplicação do conhecimento disponível.

O problema das qualificações atravessa toda a cadeia de comando da proteção civil e domínios relacionados. A confusão está instalada entre amadorismo, empenho e dedicação, por um lado e profissionalismo e especialização por outro. O universo das competências em ação é caótico e requer em alguns casos profissionalização e reorganização de carreiras.

Finalmente, o problema da governança em torno da floresta portuguesa cava a sepultura das tarefas de coordenação, à qual falta uma liderança com autoridade prestigiada e claramente assumida por todas as partes. O exercício de funções públicas deixou de ser exercido em função do interesse público e das populações, mas em função de interesses próprios que capturaram largos domínios da intervenção pública. Os Conselhos de Ministros, que deveriam constituir o último centro de racionalidade da decisão, transformaram-se há muito em conflito de poderes ministeriais, em busca de uns minutos de reconhecimento, quando não respondendo a motivações menos nobres, de resposta a quem capturou o interesse público.

O relatório mostra que tudo isto desabou sobre Pedrogão, com as excecionalidades, muitas, temos de reconhecer, que em termos climáticos e de dimensão de população presente naquele território tragicamente se acumularam no momento crítico.

Ou seja, problemas e demónios remetidos para debaixo do tapete que se revoltaram numa conjunção trágica de acontecimentos e condições.

Mas apesar de tudo isso, o relatório é impiedoso para a proteção civil, aos diferentes níveis da escala hierárquica, desde a proteção municipal aos níveis superiores. Incompetência, má avaliação de risco da situação, deficiente doseamento de forças e meios face à gravidade da situação, excesso de dependência face à comunicação social, tudo isto se combinou num período relativamente curto. Período curto esse que o relatório quantifica com rigor, ou seja, o período em que a intervenção humana poderia ter minimizado a combinação viciosa de condições propiciadoras da intensificação do figo. Não o tendo feito, a partir de um limiar crítico não há intervenção mesmo que exemplarmente coordenada que permita a inflexão e o próprio efeito do fogo sobre as condições atmosféricas tornou-se avassalador.

Vale a pena ler este relatório.

Do ponto de vista político, duas grandes consequências emergem da avaliação realizada.

Primeiro, todos os políticos e governos que contribuíram para remeter para debaixo do tapete as debilidades estruturais anteriormente enunciadas saem totalmente chamuscados (perdoem a expressão) dos resultados desta avaliação. Não sei se isso será suficiente para mudar de rumo. Na curva próxima, há sempre um momento de conjuntura ou uma qualquer realização que nos faz voltar à política virtual. Até ao próximo demónio que se revolte.

Segundo, a proteção civil não pode ficar remetida à sua inércia. Compreendo António Costa na sua tardia decisão em remodelar a ministra Constança Urbano de Sousa. É que o próprio primeiro-Ministro dificilmente sai ileso de toda a trapalhada em que a proteção civil tem andado mergulhada. Demitir a Ministra acaba por fragilizar o primeiro-Ministro. Mas adiar não resolve o problema. O relatório da CTI é cristalino e não pode ser entendido como uma espécie de livro branco que se edita para dar a ideia de que se mobiliza conhecimento. Não. Ele toca em matérias que se o poder político se mantiver surdo em relação aos alertas que produz representará uma clara manifestação de inépcia política.

Com os demónios debaixo do tapete devidamente acomodados e controlados tudo é mais fácil. O pior é que os demónios por vezes se soltam.

Sem comentários:

Enviar um comentário