(A confiança
ilimitada que tenho na seriedade e integridade intelectual do Professor João Guerreiro
e a leitura do relatório da Comissão Técnica Independente permitem-me concluir
estar perante um dos mais relevantes contributos da sociedade civil e da
inteligência nacional para um novo paradigma da gestão florestal e do combate aos
incêndios rurais; a
firmeza e consistência do relatório são apreciáveis e, embora não faça sangue
como alguns pretenderiam, apresenta conclusões sobretudo em matéria de proteção
civil bastante contundentes para o MAI…)
Como conflito de interesses
a assinalar não posso deixar de referir que tenho um enorme apreço pela maneira
de estar na Universidade e na vida pública do Professor João Guerreiro da
Universidade do Algarve. Por isso, a sua coordenação da Comissão Técnica Independente
assegura-me a máxima confiança e o relatório confirma essa confiança.
Dos meus relatos neste
blogue dos fatídicos acontecimentos de Pedrogão, recordo essencialmente duas
intuições que aqui manifestei. Primeiro, aquele abraço-desabafo do Secretário
de Estado da Administração Interna ao Presidente Marcelo, manifestando toda a
sua impotência perante uma situação que, por inépcia inicial, tinha fugido ao
controlo das mais bem-intencionadas forças de intervenção, representou então
para mim a perceção da tragédia que haveria de consumar-se. Segundo, apesar de
serem evidentes inépcias e erros de avaliação estratégica de intervenção, os
acontecimentos de Pedrogão devem-se em última instância a um estado de
debilidade estrutural do país em certas matérias que os sucessivos governos, na
ânsia de apresentar resultados imediatistas, têm remetido para baixo do tapete.
Qualquer assomo de recuperação na conjuntura económica e no ritmo de crescimento
económico é o combustível adequado para que os governos tendam a ignorar a tal
debilidade estrutural em alguns domínios. O trágico da situação é que os políticos
que remetem para baixo do tapete essas debilidades não sabem que estão a
expor-se à fragilidade da sua ação governativa. Basta que um desses domínios
saia descontroladamente para fora do tapete para que se compreenda que o poder
da governação é nulo.
O relatório da Comissão
Técnica Independente creio que me dá razão nas minhas intuições do momento.
Há três problemas
centrais que o relatório identifica como profundamente danosos da magnitude dos
efeitos de semana tão fatídica. Esses três problemas são problemas transversais
da sociedade portuguesa que deveriam exigir maior persistência de intervenção e
de alocação de recursos à sua resolução. Não são problemas que proporcionem power points sugestivos e reveladores da
ação política. Mas estão aí à espera que lhe dediquemos a atenção devida.
Os três problemas são
designados pelo relatório como insuficiências de conhecimento, défice de
qualificações e problemas de governança. Como compreendo os autores do relatório!
O problema do
conhecimento resume-se nesta constatação: o domínio dos incêndios florestais é
atravessado por uma estranha incapacidade de aplicação de valioso conhecimento científico,
internacionalmente prestigiado, que existe no país em diferentes domínios
disciplinares. Partindo do princípio que défices similares de translação e
aplicação de conhecimento científico foram ultrapassados noutras esferas da
sociedade portuguesa, como explicar o atavismo reinante na questão floresta,
aliás claramente presente na não preparação atempada de meios de combate, dado
o conhecimento que existia sobre aquele momento no território de Pedrogão e concelhos
limítrofes? Só a permanência de interesses não recomendáveis pode explicar a
resistência à aplicação do conhecimento disponível.
O problema das
qualificações atravessa toda a cadeia de comando da proteção civil e domínios
relacionados. A confusão está instalada entre amadorismo, empenho e dedicação,
por um lado e profissionalismo e especialização por outro. O universo das
competências em ação é caótico e requer em alguns casos profissionalização e
reorganização de carreiras.
Finalmente, o problema
da governança em torno da floresta portuguesa cava a sepultura das tarefas de coordenação,
à qual falta uma liderança com autoridade prestigiada e claramente assumida por
todas as partes. O exercício de funções públicas deixou de ser exercido em função
do interesse público e das populações, mas em função de interesses próprios que
capturaram largos domínios da intervenção pública. Os Conselhos de Ministros, que
deveriam constituir o último centro de racionalidade da decisão, transformaram-se
há muito em conflito de poderes ministeriais, em busca de uns minutos de
reconhecimento, quando não respondendo a motivações menos nobres, de resposta a
quem capturou o interesse público.
O relatório mostra que
tudo isto desabou sobre Pedrogão, com as excecionalidades, muitas, temos de
reconhecer, que em termos climáticos e de dimensão de população presente naquele
território tragicamente se acumularam no momento crítico.
Ou seja, problemas e demónios
remetidos para debaixo do tapete que se revoltaram numa conjunção trágica de acontecimentos
e condições.
Mas apesar de tudo isso,
o relatório é impiedoso para a proteção civil, aos diferentes níveis da escala
hierárquica, desde a proteção municipal aos níveis superiores. Incompetência, má
avaliação de risco da situação, deficiente doseamento de forças e meios face à
gravidade da situação, excesso de dependência face à comunicação social, tudo
isto se combinou num período relativamente curto. Período curto esse que o
relatório quantifica com rigor, ou seja, o período em que a intervenção humana
poderia ter minimizado a combinação viciosa de condições propiciadoras da intensificação
do figo. Não o tendo feito, a partir de um limiar crítico não há intervenção
mesmo que exemplarmente coordenada que permita a inflexão e o próprio efeito do
fogo sobre as condições atmosféricas tornou-se avassalador.
Vale a pena ler este
relatório.
Do ponto de vista político,
duas grandes consequências emergem da avaliação realizada.
Primeiro, todos os políticos
e governos que contribuíram para remeter para debaixo do tapete as debilidades
estruturais anteriormente enunciadas saem totalmente chamuscados (perdoem a expressão)
dos resultados desta avaliação. Não sei se isso será suficiente para mudar de
rumo. Na curva próxima, há sempre um momento de conjuntura ou uma qualquer
realização que nos faz voltar à política virtual. Até ao próximo demónio que se
revolte.
Segundo, a proteção
civil não pode ficar remetida à sua inércia. Compreendo António Costa na sua
tardia decisão em remodelar a ministra Constança Urbano de Sousa. É que o próprio
primeiro-Ministro dificilmente sai ileso de toda a trapalhada em que a proteção
civil tem andado mergulhada. Demitir a Ministra acaba por fragilizar o
primeiro-Ministro. Mas adiar não resolve o problema. O relatório da CTI é
cristalino e não pode ser entendido como uma espécie de livro branco que se
edita para dar a ideia de que se mobiliza conhecimento. Não. Ele toca em matérias
que se o poder político se mantiver surdo em relação aos alertas que produz
representará uma clara manifestação de inépcia política.
Com os demónios debaixo
do tapete devidamente acomodados e controlados tudo é mais fácil. O pior é que
os demónios por vezes se soltam.
Sem comentários:
Enviar um comentário