(Se era necessária
melhor prova de que o radicalismo catalão está a conduzir a identidade catalã a
um abismo, precipitando com ele o governo de Rajoy, aí a tivemos ontem na farsa
parlamentar de declarar a independência suspensa; o pior é que no enredo dessa farsa temos como
cointérprete o governo de Rajoy, que não escolheu melhor passo do que perguntar
à Generalitat se afinal declarou ou não a independência…)
Somos tão severos, por vezes, clamando que a
nossa classe política anda pelas ruas da amargura intelectual e humanamente
indigente. Tendo em conta o que passa na Catalunha deveríamos ser talvez menos
severos.
De facto, se analisarmos a sequência dos acontecimentos
na Catalunha até hoje, culminando ontem com o híper-declarativo momento parlamentar
da independência, a qualidade dos intérpretes é demasiado má, precipitando-nos
na incómoda perceção de que a estabilidade europeia está afinal dependente de gente
que não se recomenda ou não se recebe em nossa casa.
Puigdemont inventou ontem uma figura nova, a
independência suspensa. O desatino está em curso e revela-se a todo o momento,
Ontem, um parlamentar do PDeCAT, Feliu Guillaumes, brandia uma página do
Economist de 2012 para demonstrar que a imprensa internacional estava com os
independentistas na denúncia da violência policial. O desatino já entrou na
perda da noção de tempo. Mas a intervenção de Puigdemont é uma farsa. Existe um
documento assinado pelas duas forças independentistas que controlam o parlamento
catalão, Junts pel Si e a CUP, que pode ser considerado um texto de declaração
de independência. Mas o presidente da Generalitat proclamou a independência
suspensa. Desconcertante, não?
Mas a fugir também para a farsa é a decisão de
Rajoy de solicitar à Generalitat que esclareça se proclamou ou não a independência.
Será que ouvi bem? É pura verdade e a estranheza da situação levou Ferreira
Fernandes no Diário de Notícias a uma crónica deliciosa em que faz o paralelo
com os chistes de Solnado.
Atentemos no lio que está criado. Por um
lado, Rajoy prepara-se para acionar o 155º da Constituição e suspender a
autonomia, afirmando que o fará se a Generalitar responder que declarou a
independência. Por seu lado, Puigdemont e seus pares afirmam que se o 155º for
ativado então a independência será declarada. Ou seja, quem desatar o nó fará
explodir a bomba. Entretanto, o radicalismo da CUP (e as massas que tem
capturado) ficaram incomodados com a independência suspensa e ameaçam romper. Afinal
nos últimos dias duas coisas ficaram demonstradas: (i) a outra Catalunha existe
e recusa-se a não falar e a ser capturada; (ii) a economia dita as suas leis e
os grandes símbolos da economia catalã procuram sedes em locais mais recomendáveis.
Como não podia deixar de ser, num “procès”
tão dinâmico, essas duas evidências não poderiam deixar de influenciar o rumo
dos acontecimentos.
Por outro lado, espíritos mais musculados começam
a ficar incomodados com a falta de espinha do governo Rajoy. Um bom exemplo,
que conheço bem de algumas lides galegas, é o de Xosé Luís Barreiros Rivas, professor
de ciência política na Universidade de Santiago e cronista vociferador na Voz
de Galícia. Rivas, partidário de que Rajoy tivesse há mais de seis meses
cortado cerce o processo com o 155º e proposto eleições para a normalização da
situação, escreve hoje no seu tom desabrido e peculiar (mantenho o castelhano
porque em português a vociferação não tem o mesmo tom) (link aqui):
“(…)Y lo que nos queda ahora, a
España entera, es que, en vez de morir de un infarto, vamos a morir de lepra,
cólera, peste y depresión, ¡todo junto! Lo peor que podía pasar -entrar en
tierra de nadie, embarrada y purulenta- ya pasó ayer. Y hoy, cuando ya no podemos
esperar nada de la inteligencia y el sentido común, me temo que tampoco cabe
esperar que alguien aplique con eficacia la defensa de la Constitución. Pero no
nos engañemos, porque lo que buscaba Puigdemont -y lo que de hecho consiguió-
era demostrar que España se está macerando en el conflicto catalán, y que con
tiempo, y con el apoyo de los buenistas y los posmodernos, España entera
acabará pidiendo que se vayan de una vez.”
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