segunda-feira, 2 de outubro de 2017

IRONIAS DA HISTÓRIA




(Será que Carles Puigdemont pretende em outubro de 2017 ser o Lluís Companys de outubro de 1934?; ou breves reflexões sobre o 1-O de ontem…)

O editorial do El Mundo de hoje escreve o seguinte:

O 1 de outubro de 2017 não será recordado como o dia em que se realizou o referendo da independência da Catalunha, mas apenas como a jornada sinistra em que a irresponsabilidade de uma Generalitat ocupada por iluminados e a inoperância de um Governo ausente durante largo tempo se combinaram para iluminar o caos.” (http://www.elmundo.es/opinion.html?intcmp=MENUHOM24801&s_kw=opinion)

Estar de acordo com os editoriais do El Mundo não é frequente. Mas neste caso, a síntese deste parágrafo resume na perfeição o meu estado de espírito relativamente ao modo como evoluiu a partir de ontem a questão catalã. Em relação ao meu post de ontem, escrito manhã cedo de domingo 1-O, tenho de admitir que os iluminados da Generalitat “ganharam” a batalha mediática da violência. A imagem final que ficou está longe de representar a ideia de contenção, proporcionalidade e profissionalismo das forças de segurança que as primeiras horas da manhã pareciam ir determinar. O pedido de investigação das Nações Unidas pode também ser considerado uma vitória para os independentistas. Mas, como hoje sabemos, a imagem mediática destes acontecimentos nunca será a imagem real que pretenderíamos. Mas o facto das autoridades internacionais, embora reconhecendo claramente a ilegalidade do referendo, terem condenado a violência observada constitui inequivocamente uma vitória para a liderança independentista. O choque entre os meios de comunicação é de tal maneira violento (designadamente entre a TV3 independentista a toda a brida e os restantes meios de comunicação) que se constitui em elemento intrínseco da fratura já consumada. É verdade que do ponto de vista mediático a Generalitat perdeu a batalha mediática sobre a legalidade do referendo, aquelas imagens das urnas não seladas que se abriram com boletins de voto lá dentro é profundamente corrosiva para a legalidade democrática do nacionalismo em curso.

Já há alguns anos que o Professor Catedrático de Direito Constitucional na Universidade Autónoma de Barcelona Francesc de Carreras é um dos meus referenciais de opinião na Catalunha. Francesc De Carreras é um dos fundadores do CIUDADANOS, embora o partido de Rivera e de Arrimadas se tenha afastado irreversivelmente dos princípios liberais e sociais-democratas do manifesto que deu origem ao movimento. Já em 20 de julho de 2015, De Carreras escrevia assim numa tribuna do El País:

Já há vários anos que o desprezo pelo direito – pela Constituição, leis e sentenças – se instalou comodamente na Catalunha oficial. O presidente da Generalitat, conselheiros, deputados e dirigentes dos partidos nacionalistas declaram com frequência que estão dispostos a saltar por cima da lei o não cumprir uma sentença e aqui não se passa nada. Os editoriais dos periódicos, os colunistas de referência, as tertúlias da rádio e da televisão, salvo muito raras exceções, não prestam especial atenção às constantes violações do estado de direito. Pelos vistos, consideram isso como algo de normal, habitual, um pormenor sem a mínima importância”.

Há gente que tem esta capacidade de compreender antecipadamente e à distância as doenças da sua sociedade. De Carreras é um exemplo. O caldo catalão para o não respeito da lei, orgulhosamente defendido em torno de uma perspetiva revolucionária do caminho para a independência, teve o seu clímax nos acontecimentos de ontem e evoluirá muito provavelmente para uma declaração universal da independência. Todo despautério que se vai descobrindo sobre a gestão oculta dos Pujol ajuda-nos a compreender quão fundo se tornou aquele caldo anotado por De Carreras.

Os nacionalistas catalães radicais pelam-se por uma boa analogia histórica, nem que para isso falseiem esta última.

Nos últimos tempos, sob a carga simbólica do mês de outubro, tem sido muito recordada a declaração unilateral do Estado catalão em outubro de 1934, vivia então a sua curta vida a República em Espanha, o que muitos historiadores consideram uma traição de Lluís Companys à então República. O evoluir da guerra de Espanha com a vitória dos franquistas haveria de levar Companys ao cadafalso, fuzilado sumariamente por um conselho militar franquista.

Como é óbvio, qualquer tentativa de equiparar o governo democrático atual de Espanha com o franquismo é pura loucura, embora a batalha mediática em torno da violência de ontem sirva a analogia a todo o custo. Não vou enveredar por ridicularizar a comparação autoassumida pelos radicais independentistas entre Puigdemont, Junqueras ou Trullul com Lluís Companys, pois não tenho conhecimento histórico aprofundado das personalidades. Mas há sempre personagens menores a que as circunstâncias da história dão um relevo desproporcionado. Será esse provavelmente o caso.

Mas pergunta-se, o que virá por aí esta semana e depois? Vai o governo espanhol depois de ouvir o PSOE e o Ciudadanos antecipar-se a uma eventual declaração unilateral de independência e acionar a bazuca do 155 da Constituição, suspender a autonomia e marcar eleições na Catalunha, para com um outro governo regional negociar alguma coisa de frutífero? Mas esse processo só parece compatível com a disponibilidade para transformar a Espanha num país federal, à semelhança do estado alemão. Terá o PP a flexibilidade para admitir essa solução? Será isso possível com o atual Rajoy? Ou a imagem de umas novas eleições regionais em que as forças independentistas as ganhem democraticamente (cenário possível face à evolução dos acontecimentos) atormentará a mente do infeliz Rajoy?

Por cá, uma certa esquerda portuguesa, tão sensível ao estilo PODEMOS e tão afincadamente divulgadora da sua inserção democrática, ganharia em perceber o perigoso caldo antidemocrático em que as lideranças políticas catalãs no poder se deixaram mergulhar. Afinal, um surto de legitimidade revolucionária é sempre algo de precioso no século XXI. Podemos dizer o pior do governo de Rajoy, da sua lassidão perante a corrupção, da sua rigidez centralista e da incapacidade que PP e PSOE, incluindo o PSOE catalão, tiveram para compreender o que se passava na Catalunha desde o afundamento da Convergência até ao presente. Mas convinha lembrar que, apesar de tudo isso, é um governo democrático e que está dentro da lei. A conversão à democracia não pode ser pontual, admitindo recaídas revolucionárias. Afinal, quem não quer ser lobo …

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