quarta-feira, 4 de outubro de 2017

AINDA A INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL




(Lawrence Summers)
(Ricardo Reis)



(Há debate para lá das minudências geograficamente circunscritas do putativo conflito entre o governador do Banco de Portugal e o ministro das Finanças, com gente de relevo a nele participar e isso é o que fundamentalmente me interessa …)

O governador do Banco de Portugal nas suas tomadas de posição públicas, essencialmente intervenções em conferências, sobre a matéria da independência dos bancos centrais não foi suficientemente claro para evitar que a economicamente iletrada imprensa portuguesa centrasse o assunto no putativo conflito com o ministro das Finanças. O tom utilizado permitiu que se gerasse a ideia de que está em curso uma grave ameaça à independência dos bancos centrais, um movimento maléfico de controlo político, sendo necessário cerrar fileiras para o evitar. Daí a que a mensagem fosse interpretada como uma referência a um caso concreto de ameaça, neste caso nativa, ou seja um pequeno presente para jornalistas excitados com o sangue que poderia jorrar.

Mas, muito sinceramente, como se diz depreciativamente em algum jargão político, isso são amendoins face à importância do debate que o assunto encerra, sem qualquer menosprezo para as duas personalidades em causa, internacionalmente reconhecidas por vias, experiências e razões diversas.

A prova do que digo está no facto do Banco de Inglaterra (link aqui) ter dedicado a conferência dos 20 anos do seu estatuto de independência ao tema. Não podemos ignorar que o ambiente de pós Brexit estará a levar as relações entre o canadiano Mark Carney, governador do Banco de Inglaterra, e Theresa May ao rubro. Mas o tom geral das presenças na conferência atesta a relevância do debate, por mais sinistras ameaças que alguém mais cabalístico esteja disposto a identificar no seu seio. Afinal, como dizia no meu post anterior sobre o assunto, o abalo de 2007-2008 não foi um abanão de circunstância. Várias disciplinas da economia estão a rever padrões e paradigmas, embora a tarefa seja gigantesca. Não é fácil antecipar o sentido das mudanças, quando estamos nelas mergulhados.

Do lado de lá do Atlântico, Lawrence Summers (link aqui) entrou recentemente no debate e não é um personagem qualquer. Sobretudo porque nos anos 80 e 90 foi um defensor dessa independência. Não se trata de fazer um julgamento sumário e concluir pela sua inadequação. Um debate sério sobre o tema deverá incidir na alteração das condições de contexto que podem justificar uma valoração diversa das vantagens e custos da opção pela independência. Por se tratar de uma conferência em que a segunda intervenção do governador do Banco de Portugal foi realizada, teria havido oportunidade para nesse contexto de debate o governador ter defendido a sua posição. Outra teria sido a interpretação.

A generalidade dos intervenientes no debate reconhece que os anos 80 e 90 foram anos de independência dos bancos centrais com atividade económica mais intensa e inflação mais baixa e estável. Trata-se de evidência suficientemente relevante. Mas como Summers refere, a questão transcende a limitada posição de que “os experts são sempre melhores do que os políticos”. Em tempos de degenerescência da base moral de muitos agentes de mercado, esse argumento também não me convence.

Summers é metódico na sua avaliação.

Do ponto de vista das vantagens da independência, há três fatores que as minimizam face ao contexto anterior: (i) primeiro, os políticos parecem globalmente mais disciplinados, claro que no mundo civilizado, não no mundo do delírio de Maduro, entre outros, e não deixa de ser curioso que sejam os falcões mais ortodoxos a protagonizar as críticas mais violentas aos bancos centrais; (ii) segundo, hoje estamos com inflação a menos e não com inflação a mais e assim estaremos no horizonte mais mediato; (iii) terceiro, os tempos da armadilha da liquidez aconselham a que os bancos centrais não travem demasiado cedo a potencial pressão inflacionária gerada pela recuperação; (iv) quarto, a partir do momento em que os BC são remunerados pelas reservas que acolhem, será baixo o incentivo para que um banco central não independente monetarize défices excessivos.

Quanto aos custos, Summers admite que no contexto de hoje a cooperação entre ministros das Finanças e bancos centrais seja mais necessária, podendo dizer-se que a coordenação com conexão política é mais fácil do que sem ela. O argumento de Summers alonga-se por várias matérias em que essa cooperação é crucial, destacando-se nelas algo que assinalei no post anterior. Hoje, no mix de política fiscal-política monetária a primeira tem redobrado de importância. Aliás, essa cooperação é demasiado importante para não ser accountable. Como cidadão, tenho todo o direito em reivindicar que a cooperação hoje necessária entre ministério das Finanças e Banco Central esteja a salvo de qualquer conflito institucional pu pessoal.

Mas o debate existe porque existe outra conflitualidade que não podemos ignorar, a da própria economia e a da gestão macroeconómica. Essa conflitualidade esbateu-se nos anos de maior atividade e menor inflação. Reacendeu-se após o abalo de 2007-2008.

Por exemplo, na conferência do Banco de Inglaterra, se projetarmos a intervenção do nosso internacionalmente reconhecido Ricardo Reis (link aqui), hoje na London School of Economics, a sua intervenção é bem menos questionadora do pressuposto da independência. Ambos economistas não petrificados e abertos ao pensamento crítico, têm perspetivas diferenciadas sobre o tema. Assim é e será por mais tempo, pelo menos enquanto permanecer a dúvida se o pós abalo vai ser ou não desta vez diferente. É essa a indeterminação, a par de outras.

Tudo isto vale mais do que análises de jornalistas economicamente iletrados. Sempre invocando a máxima de Bradford DeLong, “Oh Oh why can’t we have better press corps?”

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