terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

NA MORTE DE GEORGE STEINER



Morreu ontem um grande! George Steiner – intelectual e homem de letras, um extraordinário crítico literário do The New Yorker entre 1966 e 1997, além de um profundo ensaísta, ficcionista e professor (mesmo tendo um dia escrito que apenas “queria ser como esse personagem maravilhoso no filme sobre Neruda [O Carteiro]” porque “é um trabalho muito lindo ser professor, ser o que entrega as cartas, embora não as escreva”) – faleceu na sua casa de Cambridge aos 90 anos. Disse um seu amigo que lhe terá confessado recentemente que já não se sentia cómodo no mundo, tornado um lugar irreconhecível. Como em tempos também tinha afirmado crer firmemente no direito à eutanásia porque “é um horror envelhecer sem dignidade”. Sublinhando ainda: “Antes, as famílias podiam mais ou menos encarregar-se dos seus anciãos, mas já não podem. Talvez que a próxima crise seja geracional.”


Fui procurar e encontrei três momentos em que aqui me referi especificamente a Steiner. O primeiro, ao findar de 2011, citando uma passagem eloquente de uma sua entrevista: “No estado atual, é possível [o colapso da Europa]. Mas vamos sair desta situação de uma forma ou de outra. Irónico é a Alemanha poder voltar a dominar. É um passo atrás. Entre Agosto de 1914 e Maio de 1945, a Europa, de Madrid a Moscovo, de Copenhaga a Palermo, perdeu quase 80 milhões de pessoas em guerras, deportações e campos de extermínio, fome, bombardeamentos. O milagre está em que sobreviveu. Mas a sua ressurreição foi apenas parcial. A Europa está a passar por uma crise dramática; está a sacrificar uma geração, a dos seus jovens, que não acreditam no futuro. Quando eu era jovem, havia esperanças para todos os gostos: o comunismo, com certeza! O fascismo, que foi também uma esperança, não nos deixemos enganar. E, para os judeus, havia ainda o sionismo. Havia ideologias aos montes... Isso já não existe. Ora, quando a juventude não é tomada por uma esperança, mesmo que ilusória, o que resta? Nada.” Ao que escolhi então acrescentar um excerto da abertura, que é uma exaltação da cultura e da memória, de um dos meus livros de culto (“A Ideia de Europa”, 2004): A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo.” E, ainda, a sua reflexão conclusiva: “É porventura apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base [do sonho novamente sonhado].”

O segundo, em maio de 2013, apontava a preciosidade de uma sua entrevista ao “Le Monde”: “Assusta-me [o futuro da juventude estudantil]. Estamos a criar uma apatia nos jovens, uma ‘acédia’, grande palavra medieval sobre a qual Dante e S. Tomás de Aquino escreveram coisas formidáveis. Essa forma de torpor espiritual faz-me medo. O filatelista que está pronto a matar por um selo, esse, tem sorte.” Uma afirmação que prolongava a que já se lhe tinha “ouvido” um ano atrás: “A Europa atravessa hoje uma crise dramática; ela está em vias de sacrificar uma geração, a dos seus jovens, que não creem no futuro. (…) Ora, se não somos agarrados na nossa juventude por uma esperança, seja ela ilusória, o que fica? Nada.”

Na mesma entrevista, Steiner também quis explicar um outro racional das suas opções de vida: “Atualmente são as ciências que ocupam o alto da calçada, não as humanidades. Instalando-me em Princeton (New Jersey), na ‘casa’ de Einstein, e depois em Cambridge (Reino Unido), escolhi viver no meio dos príncipes da ciência. As ciências são o grande vetor do futuro. Mesmo se se é medíocre neste domínio, está-se como que integrado numa equipa que progride para o alto, num tapete rolante.” Uma afirmação também muito em linha com uma outra que a precedera: “Hoje, uma imensa parte do universo é-nos fechada. O nosso mundo encolhe. As ciências tornaram-se-nos inacessíveis. Quem pode compreender as últimas aventuras da genética, da astrofísica, da biologia? Quem pode explicá-las ao profano? Os saberes já não comunicam; os escritores e os filósofos são doravante incapazes de nos fazer ouvir a ciência.” E onde agulhava, ainda, para uma problematização essencial da cultura: “Inquieto-me por saber o que quer dizer ‘ser letrado’ hoje – ‘to be literate’, a expressão é ainda mais forte em inglês. Pode ser-se letrado sem compreender uma equação não linear? A cultura está ameaçada de se tornar provincial. Talvez seja preciso repensar toda a nossa conceção da cultura.” Não sem mais personalizadamente confessar: “Ela [a cultura] torna suportável a existência. Não é alegre sermos mortais, não é de todo alegre. Somos todos confrontados com o cancro, o stress, o medo; cada dia pode trazer um adeus, e não há nada de mais angustiante. (…) Não posso passar um dia sem música, sem beleza, sem poesia. É a minha restauração de confiança, a minha sobrevivência.”

Terminava eu deste modo, e perdoe-se-me que me cite e sem aspas: Sentindo o crepúsculo aos 84 anos, este enorme intelectual e pensador da existência, do mundo e do homem – a forma como “manipula a filosofia política, as ciências da educação, a teoria da linguagem e da tradução ou o ensino dos Clássicos” ressalta à vista no seu último livro (2011), recentemente traduzido pela “Relógio D’Água” – conclui com notável lucidez: “Agora que estou muito perto do meu fim, agarro-me a uma boutade que acho de uma profundidade estrondosa. Ela vem dos círculos yiddish de Brooklyn: ‘Será que existe um deus? – Certamente, mas ainda não’. Este ‘ainda não’ traz-me uma certa força interior.” Poesia, pois claro…

Mais recentemente (julho de 2017), corri atrás de uma prodigiosa entrevista feita a George Steiner por Luciana Leiderfarb para o “Expresso” e publicada na “Revista” (abaixo a infografia que então produzi a seu propósito com alguns pensamentos marcantes). Assim, e volto a citar-me sem aspas: Aos 88 anos, e somewhat unwell, aquela notável figura, que vejo como um dos grandes intelectuais europeus contemporâneos – quem não se lembra do “continente dos cafés” em “A Ideia da Europa”? –, revela tanto em termos de lucidez e sabedoria como de desilusão e desapego à vida. Profere algumas afirmações surpreendentes e até chocantes, quase renegadas mesmo, e provoca-nos inevitavelmente um dominante lastro depressivo (“o verdadeiro crime é viver demasiado”, só para início de conversa). Mas deixa dito quase tudo daquilo que é decisivo consciencializarmos nesta nossa existência contemporânea – como bem o evidenciam aqueles excertos que simbolicamente escolhi e acima reproduzo e pelos quais perpassam dois grandes sentidos de esperança: a ciência em geral e o lema pessoal de sempre se “estar interessado em alguma coisa”. A ler e reler.

Que mais posso eu acrescentar que não um sentido e agradecido tributo?

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