sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

TIQUES DE UMA SEGUNDA LEGISLATURA



(A procissão ainda vai no adro no que respeita ao significado da remodelação anunciada para a Direção Geral do Património Cultural e do que foi possível saber pelo pedido de audiência parlamentar da Ministra da Cultura realizado pelo PCP. Mas, ou muito me engano, ou vamos ter aqui um exemplo verdadeiramente ilustrativo dos tiques de governação a que o PS nos tem habituado em segundas legislaturas.)

Se analisarmos o percurso que o Portugal democrático tem apresentado em matéria de património histórico e cultural não é difícil confirmar que, sem o contributo dos Fundos Estruturais, a situação teria evoluído do desastre para a tragédia. E também não custa admitir que os municípios têm feito mais pela matéria do que o poder central.

O panorama global tem assim sido caracterizado pela míngua de recursos, e sem metal todas as insuficiências vêm regra geral à luz do dia. Uma situação desta natureza é pantanosa, pois a míngua de recursos desculpa muita coisa e muito provavelmente acaba por confundir-se com a incúria de muita gente, materializada em inércia, vícios e desmotivação que abunda pela administração central com menor escrutínio e presa no seu quotidiano repetitivo.

Como seria compreensível, se todo este cenário se aplicava até ao período da TROIKA, o choque orçamental abrupto que o ajustamento da economia portuguesa implicou multiplicou as evidências de que o património histórico e cultural estava em risco.

A história das obras de arte desaparecidas, talvez uma forma engenhosa e bondosa de designar uma prática de roubo dos recursos públicos, constitui uma espécie de metáfora de toda a incúria reinante em matéria de preservação, gestão e valorização do património histórico e cultural. Só uma investigação profunda e desinibida nos permitiria compreender as condições concretas em que os desvios de localização (e provavelmente o locupletamento) das peças ocorreram. Mas seguramente que encontraríamos exemplos da nossa costumeira desvalorização do que é público, capturando acessos e usufrutos que deveriam constituir um instrumento de valorização cultural de toda a população, incluindo a justiça territorial do acesso a esses bens.

Para além da reprodução interna da incúria, esta míngua de recursos gera um outro efeito perverso e por aí começamos a aproximar-nos das razões do pedido de audiência parlamentar do PCP à Ministra Graça Fonseca.

O outro efeito perverso é a tentação para que a míngua de recursos leve o Estado a procurar nos privados a solução. Certamente que há gradações neste recurso à parceria. O exemplo do mecenato para algumas reabilitações ou mesmo para patrocinar uma grande exposição não interferem com o acesso ao bem público e certamente que haverá outros exemplos em que o acesso ao bem público é viabilizado sem mácula.

Do que se sabe do pedido de audiência parlamentar do PCP à ministra da Cultura é que o património público (neste caso obras de arte) terá sido utilizado como contrapartida de uma intervenção realizada por um grupo turístico privado que utilizará o referido património como elemento ou adereço valorizador do seu empreendimento. Ora aqui, cara Ministra, o acesso ao bem público é violado ou cerceado e isso é razão suficiente para dizer que o assunto cheira a esturro.

Na interpretação que Luís Raposo em artigo no Público lhe dá (link aqui), o incidente adquire um outro significado, anunciando tendências, pois a remodelação observada na Direção-Geral parece sugerir uma lógica de valorização turístico-imobiliária, anunciando-se competências nessa área. É matéria para seguir com atenção. Até posso admitir que a Direção-Geral precisa de arejamento para combater a tal inércia a que anteriormente me referia. Mas se Luís Raposo tiver razão, então estaremos perante um daqueles tiques irritantes com que o PS por vezes nos brinda, ressuscitando abordagens à Blair do relacionamento público-privado para os novos contextos de míngua declarada de recursos públicos.

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