segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

ZONZO COM VITALINA



(Graças a um dos canais do novo TV Cine no cabo vi finalmente o filme VITALINA VARELA de Pedro Costa, um paradoxo neste período de Carnaval que detesto, salvo a alegria dos netos com as suas fardetas. Umas curtas férias chegam a preceito para recuperar do impacto provocado pela maestria e rigor de Pedro Costa e sobretudo por aquele rosto telúrico de Vitalina. Apetecia-me fazer um curso de cinema só em torno deste filme. Ainda estou zonzo.

Não tenho cultura cinematográfica que chegue para avaliar se Pedro Costa é uma espécie de Manuel de Oliveira do claro-escuro, mas é impossível ficar indiferente ao seu cinema. Mesmo antes de ver o filme, aquele rosto telúrico de Vitalina e aquela presença soberba e digna do seu corpo já me tinham conquistado.

Aquela imagem que precede a apresentação do título do filme, em que num aeroporto suspenso uma mulher negra desce do avião e a câmara se projeta nos seus pés descalços ainda na escada de saída, é prodigiosa (no cinema que conheço só Bresson filma assim). Um conjunto de cabo-verdianas, que chegam para limpar o avião, recebem Vitalina, atrasada três dias, por questões burocráticas do voo para o funeral do seu marido, já enterrado e, simbolicamente, comunicam-lhe que o melhor é voltar para a Terra.

Com a tenacidade dos resilientes, Vitalina mergulha no complexo labiríntico do sítio em que o marido Joaquim vivia, na casa que ela desdenha face à que ambos construíram em Cabo Verde antes de a abandonar, numa escuridão permanente e Pedro Costa filma uma espécie de zombies, que deambulam pela degradação das habitações e corredores estreitos, em busca de informações sobre a morte do marido.

Alguns monólogos de Vitalina vão-nos dando conta das condições em que se deu a separação e a vinda para Lisboa de Joaquim, numa clara metáfora da diáspora cabo-verdiana menos qualificada, em busca de trabalho embora sem nunca conseguir a integração e a felicidade. Já quase no fim do filme uma imagem crua do cemitério em que estão enterrados cabo-verdianos mostram-nos cruelmente números, simples números, e não nomes nem datas, completando essa denúncia.

A reduzida habitação de Joaquim-Vitalina transforma-se num exíguo estúdio de filmagem e, progressivamente, vai-se percebendo a cumplicidade entre Pedro Costa e Vitalina, o que revela o ganho de confiança no poder narrativo do realizador (e a espantosa fotografia de Leonardo Simões) para que aquela comunidade se abra a um olhar exterior. No claro-escuro de todo o filme emergem por vezes cores simples, berrantes, como o azul do roupão de Vitalina e da sua porta de entrada, o vermelho do sangue na cama do falecido Joaquim ou no escarlate do altar abandonado em que se dá o encontro das personagens que estabelecem a relação com o último filmes de Costa (Cavalo Dinheiro de 2014). Vitalina e Ventura, personagem central de Cavalo Dinheiro, este assumindo as vestes de um padre que enterrou Joaquim, perturbado, dilacerado por aquele espaço abandonado, símbolo admito eu do abandono pela igreja da comunidade cabo-verdiana. Esse diálogo é talvez o momento mais enigmático do filme, não se percebe se o recitativo de Ventura é composto de peças isoladas da Bíblia ou de qualquer outra referência.

Pois, numa entrevista que encontrei de Pedro Costa ao Cinema Scope (ver link aqui), para minha total surpresa o recitativo de Ventura em português para Vitalina repetir incorpora excertos de um poema de Antero de Quental, Sombra de 1865:

“Quando Cristo sentiu que a sua hora
Enfim era chegada, grave e calmo,
Sereno se acercou dos que o buscavam.
A turba vinha em armas. Mas, de tantos,
Nem um só se atreveu a dar um passo,
A pôr a mão no Filho do Homem.    Todos
De olhos no chão, as armas encobriam
Ante Jesus inerme.
Então aquele
Que o tinha de entregar, aproximando-se,
O tomou nos seus braços, murmurando:
Que Deus te salve. Mestre! e, sobre a face
O beijou, como fora contratado:
Então os mais, chegando-se, o prenderam.
Mas Jesus, sem os ver, lhes perdoava:
De olhos no céu, seguia-os sereno.
Era duro o caminho. Sobre um monte
Iam e, dos dois lados, lá em baixo,
Cobria a treva a terra toda.
Quando,
Porém, sobre o mais alto desse monte
Foram enfim chegados, de repente
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se
De uma luz doce e branda, mas imensa!
E quanta terra, desde o monte ao oceano,
Lhe ficava ao lado aonde virada
Lhe estava aquela face, refletindo-a,
Tudo se esclarecia vale e serra
E a metade do céu aparecendo
Como em puro luar, ou qual se fosse
Vir nascendo uma aurora desse lado.
E essa face radiante era a que Judas
Não chegara a tocar.
Porém a outra,
Que ele beijara, conservou-se escura
Como se o crime dele ali guardasse...
Nem dava luz; e o espaço, dessa banda
Onde virava, era uma noite imensa,
Coberto o horizonte de nevoeiro...
Partido o mundo em dois, essa metade
Era a que se ficara envolta em sombras.

Foi dessas sombras que se fez a Igreja!”

A última cena do filme, concretizada em Cabo Verde, mostrando duas mulheres, uma mais velha e outra mais nova a construírem uma casa com blocos de cimento (Vitalina refere a construção da sua casa, primeiro com Joaquim e depois sozinha depois de abandonada por este) tanto pode ser uma cena do passado, como um sonho. É talvez a dimensão esperançosa do filme, tal como o são a cena à John Ford de Vitalina a compor o telhado da casa de Lisboa contra um vento poderoso ou a sua pequena agricultura na horta junto ao cubículo de Joaquim.

Fiquei claramente zonzo e contra as cordas. As férias recatadas de Carnaval salvaram-me em pleno gongue. Depois de ter visto o longo plano sequência de Sam Mendes no 1917, os planos rigorosos, autênticas fotografias, pinturas sei lá, são outra coisa, são como alguém dizia entre as inúmeras críticas que li "cinema do outro mundo". Talvez por isso ao longo do filme como diz Ventura a certo momento os espíritos falam em português, convidando Vitalina a aprender para poder contactar o seu interlocutor. De outro mundo.

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