(Graças a um dos canais do novo TV Cine no cabo vi finalmente o filme
VITALINA VARELA de Pedro Costa, um paradoxo neste período de Carnaval que
detesto, salvo a alegria dos netos com as suas fardetas. Umas curtas férias
chegam a preceito para recuperar do impacto provocado pela maestria e rigor de
Pedro Costa e sobretudo por aquele rosto telúrico de Vitalina. Apetecia-me fazer um curso de cinema só em torno deste filme. Ainda estou
zonzo.
Não tenho cultura
cinematográfica que chegue para avaliar se Pedro Costa é uma espécie de Manuel
de Oliveira do claro-escuro, mas é impossível ficar indiferente ao seu cinema.
Mesmo antes de ver o filme, aquele rosto telúrico de Vitalina e aquela presença
soberba e digna do seu corpo já me tinham conquistado.
Aquela imagem que
precede a apresentação do título do filme, em que num aeroporto suspenso uma
mulher negra desce do avião e a câmara se projeta nos seus pés descalços ainda
na escada de saída, é prodigiosa (no cinema que conheço só Bresson filma
assim). Um conjunto de cabo-verdianas, que chegam para limpar o avião, recebem
Vitalina, atrasada três dias, por questões burocráticas do voo para o funeral
do seu marido, já enterrado e, simbolicamente, comunicam-lhe que o melhor é
voltar para a Terra.
Com a tenacidade dos
resilientes, Vitalina mergulha no complexo labiríntico do sítio em que o marido
Joaquim vivia, na casa que ela desdenha face à que ambos construíram em Cabo
Verde antes de a abandonar, numa escuridão permanente e Pedro Costa filma uma
espécie de zombies, que deambulam pela degradação das habitações e corredores
estreitos, em busca de informações sobre a morte do marido.
Alguns monólogos de
Vitalina vão-nos dando conta das condições em que se deu a separação e a vinda
para Lisboa de Joaquim, numa clara metáfora da diáspora cabo-verdiana menos
qualificada, em busca de trabalho embora sem nunca conseguir a integração e a felicidade.
Já quase no fim do filme uma imagem crua do cemitério em que estão enterrados
cabo-verdianos mostram-nos cruelmente números, simples números, e não nomes nem
datas, completando essa denúncia.
A reduzida habitação
de Joaquim-Vitalina transforma-se num exíguo estúdio de filmagem e,
progressivamente, vai-se percebendo a cumplicidade entre Pedro Costa e
Vitalina, o que revela o ganho de confiança no poder narrativo do realizador (e
a espantosa fotografia de Leonardo Simões) para que aquela comunidade se abra a
um olhar exterior. No claro-escuro de todo o filme emergem por vezes cores
simples, berrantes, como o azul do roupão de Vitalina e da sua porta de
entrada, o vermelho do sangue na cama do falecido Joaquim ou no escarlate do
altar abandonado em que se dá o encontro das personagens que estabelecem a
relação com o último filmes de Costa (Cavalo Dinheiro de 2014). Vitalina e Ventura,
personagem central de Cavalo Dinheiro, este assumindo as vestes de um padre que
enterrou Joaquim, perturbado, dilacerado por aquele espaço abandonado, símbolo
admito eu do abandono pela igreja da comunidade cabo-verdiana. Esse diálogo é
talvez o momento mais enigmático do filme, não se percebe se o recitativo de
Ventura é composto de peças isoladas da Bíblia ou de qualquer outra referência.
Pois, numa entrevista
que encontrei de Pedro Costa ao Cinema Scope (ver link aqui), para minha total
surpresa o recitativo de Ventura em português para Vitalina repetir incorpora
excertos de um poema de Antero de Quental, Sombra de 1865:
“Quando
Cristo sentiu que a sua hora
Enfim era
chegada, grave e calmo,
Sereno se
acercou dos que o buscavam.
A turba vinha
em armas. Mas, de tantos,
Nem um só se
atreveu a dar um passo,
A pôr a mão
no Filho do Homem. ‑ Todos
De olhos no
chão, as armas encobriam
Ante Jesus
inerme.
Então aquele
Que o tinha
de entregar, aproximando-se,
O tomou nos
seus braços, murmurando:
Que Deus te
salve. Mestre! e, sobre a face
O beijou,
como fora contratado:
Então os
mais, chegando-se, o prenderam.
Mas Jesus,
sem os ver, lhes perdoava:
De olhos no
céu, seguia-os sereno.
Era duro o
caminho. Sobre um monte
Iam e, dos
dois lados, lá em baixo,
Cobria a
treva a terra toda.
Quando,
Porém, sobre
o mais alto desse monte
Foram enfim
chegados, de repente
Viu-se-lhe
uma das faces alumiar-se
De uma luz
doce e branda, mas imensa!
E quanta
terra, desde o monte ao oceano,
Lhe ficava ao
lado aonde virada
Lhe estava
aquela face, refletindo-a,
Tudo se
esclarecia ‑ vale e serra
E a metade do
céu ‑ aparecendo
Como em puro
luar, ou qual se fosse
Vir nascendo
uma aurora desse lado.
E essa face
radiante era a que Judas
Não chegara a
tocar.
Porém a
outra,
Que ele
beijara, conservou-se escura
Como se o
crime dele ali guardasse...
Nem dava luz;
e o espaço, dessa banda
Onde virava,
era uma noite imensa,
Coberto o
horizonte de nevoeiro...
Partido o
mundo em dois, essa metade
Era a que se
ficara envolta em sombras.
Foi dessas
sombras que se fez a Igreja!”
A última cena do
filme, concretizada em Cabo Verde, mostrando duas mulheres, uma mais velha e
outra mais nova a construírem uma casa com blocos de cimento (Vitalina refere a
construção da sua casa, primeiro com Joaquim e depois sozinha depois de
abandonada por este) tanto pode ser uma cena do passado, como um sonho. É
talvez a dimensão esperançosa do filme, tal como o são a cena à John Ford de
Vitalina a compor o telhado da casa de Lisboa contra um vento poderoso ou a sua
pequena agricultura na horta junto ao cubículo de Joaquim.
Fiquei claramente zonzo
e contra as cordas. As férias recatadas de Carnaval salvaram-me em pleno gongue.
Depois de ter visto o longo plano sequência de Sam Mendes no 1917, os planos
rigorosos, autênticas fotografias, pinturas sei lá, são outra coisa, são como
alguém dizia entre as inúmeras críticas que li "cinema do outro mundo". Talvez
por isso ao longo do filme como diz Ventura a certo momento os espíritos falam
em português, convidando Vitalina a aprender para poder contactar o seu
interlocutor. De outro mundo.
Sem comentários:
Enviar um comentário