quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

DA EUTANÁSIA


E quando parecia que Cavaco se tinha finalmente reduzido à sua verdadeira insignificância, calando a sua voz sempre negativista e reacionária em relação aos temas transformadoramente mais complexos e desafiantes que vão atravessando a nossa vida pública e política, ei-lo de novo a produzir as suas já conhecidas declarações contundentes e agoirentas. Desta vez a pretexto da questão da eutanásia, Cavaco veio colocar a decisão que a Assembleia da República irá produzir na próxima semana sobre a matéria ao mesmo nível em que já o fizera noutros tempos aquando da interrupção voluntária da gravidez ou do casamento homossexual, isto é, a “decisão mais grave para o futuro da nossa sociedade”. Fica o horripilante aviso!


Contrastadamente, e após um período em que não tem a meu ver primado pela perspicácia analítica ao nível a que estávamos habituados, José Pacheco Pereira apresentou na “Circulatura do Quadrado” de hoje uma posição cristalina e desapaixonada sobre o assunto. Nos seguintes termos: “A questão da eutanásia é uma questão muito complicada e, portanto, antes de lhe responder diretamente à questão é preciso colocá-la nos seus termos. Eu, primeira prevenção, em bom rigor sou ateu; o meu pai dizia-me sempre que não se devia escrever no censo que se é ateu mas que se devia lá pôr que se é agnóstico (porque um filósofo nunca devia dizer que é ateu porque não tem a certeza que Deus não exista). Mas, em segundo lugar, eu também não penso que o comportamento dos homens e as ações humanas se reduzam apenas à dimensão da cidadania – uma distinção importante dos programas partidários é que há dois que proclamam um princípio personalista, que são o PSD e o CDS, e há outros, em particular o PS e o PC, que assentam o seu pensamento sobre o humano em política na questão da cidadania e, portanto, de um certo ponto de vista consideram que o Estado deve ter o poder de regular os termos dessa cidadania, o que significa que para eles é normal que a questão da eutanásia, por muito complexa que seja, seja apenas uma questão de lei e, nesse sentido, admitem que a Assembleia da República o pode fazer e que as posições partidárias devem ser refletidas no voto dos deputados. Eu não acho isso. Mesmo sendo ateu, considero que há uma dimensão do humano – uma dimensão cultural, se quisermos, uma dimensão de dignidade – que está para além da política, que não é inteiramente redutível à dimensão da política. Eu compreendo que, para quem tenha um ponto de vista religioso e acredite em Deus, essa dimensão é essencialmente a da crença, da religião, da fé. No meu caso não é, é essencialmente a dimensão da liberdade, de que aquilo que é essencial no comportamento das pessoas é a liberdade e eu considero que, dentro dessa liberdade, há uma liberdade fundamental, talvez a mais importante, que é uma liberdade face à morte e é uma liberdade face ao corpo; e desse ponto de vista eu entendo que se deve ser senhor do seu próprio corpo, mesmo na situação-limite da morte; e desse ponto de vista eu sou favorável à eutanásia. Principalmente nos casos em que quem considere que a sua vida não tem sentido, não sinta a sua identidade no modo como vive – não é só o problema da dor, esse é um aspeto mas não é o único – possa matar-se, suicidar-se; e se não tiver condições físicas para garantir esse suicídio, possa legalmente, sempre dentro de uma dimensão de muita proximidade e evidentemente de muito controlo quanto às condições em que isso se realiza (entre as quais o mais importante é um elemento de lucidez porque talvez a mais importante de todas as manifestações de lucidez seja a lucidez face à morte), nesse caso eu sou a favor da eutanásia.” Acrescentando ainda, logo de seguida, que “se a questão for votada no Parlamento, tem que haver absoluta liberdade de voto individual. Esta é uma daquelas matérias em que cada um fala com os seus desejos, os seus fantasmas, as suas ideias, as suas crenças, seja lá o que for, e, portanto, deve sempre haver uma completa liberdade de voto. No entanto, embora eu reconheça que os argumentos a favor do referendo sejam essencialmente dilatórios e de má fé, não me choca que a questão possa ser referendada.” Assino por baixo.

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