quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

INFRAESTRUTURAS

(Jornal Público)

(O modelo de planeamento e programação de infraestruturas físicas, particularmente as de maior envergadura, está claramente enferrujado e, consequentemente, sujeito a toda a série de interferências e ruídos. Estamos de novo perante essa incómoda evidência.

As razões para o enferrujamento da máquina de planeamento das grandes infraestruturas são fáceis de explicar. Os ministérios setoriais foram perdendo as suas orgânicas de planeamento, à medida e em proporção do enchimento das equipas de assessores amovíveis e de confiança política de ministros e secretários de Estado. O aumento da idade média dos quadros da administração pública e a sua não substituição tenderam a agravar esse problema. Para além disso, nos últimos tempos o volume de investimento físico reduziu-se inapelavelmente, na sequência das famigeradas prioridades negativas dos Fundos Estruturais que começaram a rarefazer os recursos alocados a este tipo de investimentos, em grande medida passados para a escala dos grandes projetos e redes europeus. Daí a metáfora do enferrujamento.

Toda a gente ainda seguramente se lembra da grande salgalhada em que o então aeroporto da OTA se transformou, com estudos pouco transparentes sobre as opções de localização e um clima de praça pública pouco propenso a decisões sábias. Toda essa algazarra constitui a melhor evidência de que o planeamento da infraestrutura não se impôs como deveria, numa falta de prestígio técnico imune a qualquer jogada menos séria de contestação.

Depois, ainda me recordo da falta de sentido de algumas previsões de procura que acompanhavam o projeto do TGV Lisboa-Madrid, como se o comboio de alta velocidade tivesse capacidade de atrair praticamente todo o tráfego de viatura própria entre as duas capitais europeias. Nesses casos, estamos a falar muito provavelmente de consultoras muito imaginativas, sabe-se lá em função de que tipo de interesses, mas esta simples evidência mostra como é frágil o planeamento público e a sua capacidade crítica de questionar estimativas tão cruciais para um projeto desta natureza.

Pelas bandas de cá de cima, também não estamos livres de disparates que se pagam caro, normalmente com défices financeiros das entidades que devem posteriormente explorar comercialmente os resultados dessas infraestruturas-disparate. Professores e técnicos avisados alertaram para o erro de substituir a linha de caminho de ferro Porto-Vila do Conde-Póvoa de Varzim por uma extensão do metropolitano, já que o tipo de ligação e a frequência dos seus fluxos corresponderia mais a uma linha de comboio do que a uma linha de metro. Os senhores autarcas resolveram não prescindir da “modernidade” da infraestrutura metropolitana e o Estado que pague, já que não me parece ser do erário municipal que os défices de exploração vão ser colmatados. Para agravamento da má decisão, hoje o município de Esposende que estaria pronto e maduro para uma extensão da então linha da Póvoa tem hoje praticamente inviabilizada a extensão do metro, já que se compreendeu que a asneira tinha sido feita e, pelo menos, é tempo de não a repetir.

À escala mais ribeirinha, os edis do Porto e Vila Nova de Gaia anunciaram com pompa e circunstância uma nova ponte à quota baixa, lembro-me da sessão invocando a necessidade de uma alternativa à ponte de D. Luís à quota baixa. Nunca compreendi esse racional e pelo que se tem sabido, não com a pompa e circunstância como o projeto foi apresentado, afinal as condições de inserção da ponte nos tecidos do Porto e Vila Nova de Gaia não estavam bem definidas. Aguardam-se os novos episódios, mas é legítimo admitir que o planeamento da obra carecia de grande profundidade.

E estamos regressados ao tema aeroporto, numa época em que o futuro do transporte aéreo pode estar ameaçado, numa grave contradição entre a incontornável globalização das pessoas e o problema das emissões de dióxido de carbono. O governo está em dificuldades e as condições em que a hipótese Montijo emergiu são tudo menos claras, a não ser a invocação de uma necessidade de exceção. Entretanto, os riscos de um aeroporto praticamente no centro da Cidade, com aviões a voarem por cima das nossas cabeças, parece claramente subvalorizados. A privatização da ANA torna tudo mais complicado e o jogo de estratégias de atores que a construção de um novo aeroporto suscita é cada vez mais complexo.

Hoje, no Público (link aqui), finalmente, depois de uma longa ausência pelo menos com artigos do meu conhecimento, regressou a prosa esclarecida, rigorosa, do Professor José Manuel Viegas, esclarecendo-nos sobre o erro da extensão do metro de Lisboa até Loures (como o foi, como o mostram, os números a extensão a Odivelas) e mostrando que num outro contexto uma ligação de comboio inserida numa nova estratégia ferroviária para a Área Metropolitana de Lisboa. Imagino que muito provavelmente o amigo Professor Nunes da Silva, que sempre se incompatibilizou com o José Manuel Viegas, seu colega no Instituto Superior Técnico, aparecerá aguerrido a contrapor algum argumento para que o JMV não fique tão bem na fotografia. Cá pela minha parte, é com textos como o do José Manuel Viegas que se pode construir uma discussão aberta e rigorosa destes temas, um primeiro passo para que as orgânicas de planeamento das grandes infraestruturas possam respirar melhor e impor-se ao ruído e às jogatanas táticas.

Não quero ser saudosista porque o não sou. Mas havia uma coisa respeitada no país que se chamava Conselho Superior de Obras Públicas. Burilando alguns tiques de antigo regime, pelo menos era uma coisa em que se podia ter alguma confiança técnica. Sobretudo porque não abundam contributos como o do bem regressado José Manuel Viegas. E por aqui me fico.

Sem comentários:

Enviar um comentário