domingo, 2 de fevereiro de 2020

A CRUELDADE DOS NÚMEROS



(Eu sei que, face aos ensinamentos do passado, o modelo de aposta nos não transacionáveis que os famigerados “vistos gold” ocultam não se recomenda a ninguém. Mas há por aí umas mentes peregrinas que, saudosas do aparente fausto que aquele modelo proporcionava, se esfalfaram por trazer para norte essa “pérola”. Mas a crueldade dos números deveria justificar um completo reset, dos que fazemos quando as máquinas se recusam a funcionar.)

O modelo dos não transacionáveis deu emprego a muita gente, lucros chorudos a alguns e criou no país a típica ilusão dos El Dorados deste calibre. Como o modelo se projeta sobretudo em imagens urbanas de grande expressão, o português médio gosta de obra e da alta, mesmo que tenha frequentemente que sofrer os dissabores quotidianos de estaleiros quase sempre organizados sem grande respeito pela invasão do espaço público e das suas amenidades.

As vicissitudes da transição entre as décadas de 2000 e 2010 e a penosidade do ajustamento que se lhe sucedeu mostraram as contradições entre os ganhos de alguns e a má alocação de recursos que o modelo tendia a gerar.

A economia portuguesa que emergiu dessa longa fatalidade apresentou-se à míngua de capital e de investimento e é nesse contexto que se pode compreender a submissão ao pilim do capital angolano e chinês e também a invenção dos “vistos gold”. Se é verdade que, numa fase muito embrionária, o estratagema serviu para evitar a agonia da construção civil (salvando os destroços da mesma), é óbvio que para além de um certo limite se percebia imediatamente que o modelo não fazia mais do que prolongar o malogrado modelo dos não transacionáveis, com expressão na construção de luxo. E embora em não correlação direta com o esquema dos vistos gold é também nesta fase que os fundos de investimento imobiliário de expressão internacional entram na economia portuguesa atraídos pela oportunidade.

Com a nossa memória tipicamente curta, saudosos do fausto aparente do pico do modelo e à míngua de capital, houve gente a norte que esperou que desta vez e finalmente também o Norte e mais propriamente a AMP seria beneficiária. Gente de mentalidade peregrina que zurze na capital mas que na próxima curva é sempre apanhada a mimetizar o modelo da capital.

Os números que vieram a público são na perspetiva dessa gente cruéis. A AMP terá apropriado 1% apenas do bolo dos vistos gold, ficando o bolo apetecido entregue a Lisboa e sua Área Metropolitana e ao Algarve.

Está tudo dito e confesso-vos que nunca um número revelador da inferioridade do Porto e sua AMP me soube tão bem. O 1% mostra-nos que não é por aqui que devemos seguir. Por mais que custe aos saudosos do antigo modelo e sobretudo aos mundos da construção e da imobiliária que deverão estar confinados a uma quota de recursos compatível com a viragem para o exterior e não à ilusão de que podem ser motor de desenvolvimento.

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