sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

E TEMOS PARLAMENTO!



(Confesso que não sou propenso a grandiloquentes afirmações como as que associaram o dia de ontem, quinta-feira, a um dia histórico na ainda jovem democracia portuguesa. Sou mais comedido e, simplesmente, regozijo-me quando as instituições funcionam, cumprem o seu papel e contribuem para matar um dos combustíveis do populismo, todas, e mais uma, acusações aos políticos e deputados deste País.)

Sou o primeiro a reconhecer que nem sempre o Parlamento português se dignifica a si próprio, seja demitindo-se em algumas matérias, como por exemplo abdicar de um escrutínio mais incisivo sobre a evolução do projeto europeu e do modo como o vivemos, seja elevando a política dos pequenos e pequeninos interesses a um lugar central da atividade parlamentar.

Ora a discussão da despenalização da eutanásia, não deixando de ser uma questão política, atravessa os sistemas de valores de cada um e por isso seria de prever um debate final, antes da votação em plenário, propenso a todos os golpes e não apenas de retórica parlamentar. Acresce que o ambiente comicieiro que os adversários na sociedade civil da despenalização imprimiram como contexto de intimidação poderia ter ricochete no plenário e levar alguns deputados a falar mais para fora do que para o interior do plenário, em obediência a grupos a que devem fidelidade (não escrutinada democraticamente).

Pois, pelo que li e ouvi, ontem revi-me no Parlamento e na elevação com que debateu o tema, o que demonstra não ser impossível ou geneticamente inviável a existência de uma representação política credível do ponto de vista cívico e da forma como a inteligência dos representados e eleitores é respeitada. Aliás, um debate em que pude recolher novos elementos numa questão que reconheço ter alguns problemas de operacionalização. E foi bonito ouvir o modo inconfundível como Jerónimo de Sousa emitiu o seu “Não”, tão democrático como o mais incisivo apoiante do “Sim”.

Para mim o direito ao poder sobre o nosso corpo e consequentemente liberdade de poder terminar o nosso sofrimento em condições que ninguém deseja viver é inelutável. Mas compreendo que fazer depender a despenalização desse ato da intervenção de outros elementos da sociedade civil implica algum respeito pela complexidade dessa operacionalização. Creio que por isso até ao envio para promulgação e aí veremos como é que se comporta o Presidente da República e não enquanto católico praticante) poderão registar-se evoluções não necessariamente de pormenor.

Nestas coisas, tal como noutras no passado, creio que o posicionamento afirmativo de muita gente relativamente à despenalização nos termos contidos em que os projetos ontem votados acabam por colocar o problema acaba por ser reforçado pelo atentado à nossa inteligência que as perspetivas mais comicieiras do não à despenalização tendem a manifestar na esfera pública. E isso não perdoo. Não temos a mínima culpa de que, por exemplo, a Igreja se feche a revisões de dogmas e não hesite em pouco tempo mudar de opinião rejeitando primeiro e apoiando entusiasticamente depois o referendo como tábua de salvação.

Para além disso, estou farto de defesas paternalistas de “nãos” com base em argumentos de que é possível criar condições de substituição do contexto que justifica os “sins”. O melhor exemplo é o do não à regionalização que foi assumido, com êxito, na base do pressuposto de que seria possível, num ambiente de descentralização alargado e coerente, suprimir a necessidade de regionalização. Alguém do lado do “não” mexeu alguma palha nesse sentido? Alguém deu atenção no dia seguinte a esse argumento de responsabilidade?

Não subestimem, por favor, a nossa inteligência.

É bom que tenhamos Parlamento para outras matérias!

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