(Confesso que não sou propenso a grandiloquentes afirmações
como as que associaram o dia de ontem, quinta-feira, a um dia histórico na
ainda jovem democracia portuguesa. Sou mais comedido
e, simplesmente, regozijo-me quando as instituições funcionam, cumprem o seu
papel e contribuem para matar um dos combustíveis do populismo, todas, e mais
uma, acusações aos políticos e deputados deste País.)
Sou o primeiro a
reconhecer que nem sempre o Parlamento português se dignifica a si próprio,
seja demitindo-se em algumas matérias, como por exemplo abdicar de um escrutínio
mais incisivo sobre a evolução do projeto europeu e do modo como o vivemos,
seja elevando a política dos pequenos e pequeninos interesses a um lugar
central da atividade parlamentar.
Ora a discussão da
despenalização da eutanásia, não deixando de ser uma questão política,
atravessa os sistemas de valores de cada um e por isso seria de prever um
debate final, antes da votação em plenário, propenso a todos os golpes e não
apenas de retórica parlamentar. Acresce que o ambiente comicieiro que os
adversários na sociedade civil da despenalização imprimiram como contexto de
intimidação poderia ter ricochete no plenário e levar alguns deputados a falar
mais para fora do que para o interior do plenário, em obediência a grupos a que
devem fidelidade (não escrutinada democraticamente).
Pois, pelo que li e
ouvi, ontem revi-me no Parlamento e na elevação com que debateu o tema, o que
demonstra não ser impossível ou geneticamente inviável a existência de uma
representação política credível do ponto de vista cívico e da forma como a
inteligência dos representados e eleitores é respeitada. Aliás, um debate em
que pude recolher novos elementos numa questão que reconheço ter alguns
problemas de operacionalização. E foi bonito ouvir o modo inconfundível como
Jerónimo de Sousa emitiu o seu “Não”, tão democrático como o mais incisivo
apoiante do “Sim”.
Para mim o direito ao
poder sobre o nosso corpo e consequentemente liberdade de poder terminar o
nosso sofrimento em condições que ninguém deseja viver é inelutável. Mas
compreendo que fazer depender a despenalização desse ato da intervenção de
outros elementos da sociedade civil implica algum respeito pela complexidade
dessa operacionalização. Creio que por isso até ao envio para promulgação e aí
veremos como é que se comporta o Presidente da República e não enquanto católico
praticante) poderão registar-se evoluções não necessariamente de pormenor.
Nestas coisas, tal
como noutras no passado, creio que o posicionamento afirmativo de muita gente
relativamente à despenalização nos termos contidos em que os projetos ontem
votados acabam por colocar o problema acaba por ser reforçado pelo atentado à
nossa inteligência que as perspetivas mais comicieiras do não à despenalização
tendem a manifestar na esfera pública. E isso não perdoo. Não temos a mínima
culpa de que, por exemplo, a Igreja se feche a revisões de dogmas e não hesite
em pouco tempo mudar de opinião rejeitando primeiro e apoiando
entusiasticamente depois o referendo como tábua de salvação.
Para além disso,
estou farto de defesas paternalistas de “nãos” com base em argumentos de que é
possível criar condições de substituição do contexto que justifica os “sins”. O
melhor exemplo é o do não à regionalização que foi assumido, com êxito, na base
do pressuposto de que seria possível, num ambiente de descentralização alargado
e coerente, suprimir a necessidade de regionalização. Alguém do lado do “não”
mexeu alguma palha nesse sentido? Alguém deu atenção no dia seguinte a esse
argumento de responsabilidade?
Não subestimem, por
favor, a nossa inteligência.
É bom que tenhamos
Parlamento para outras matérias!
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