(O desaparecimento de Vasco Pulido Valente já mereceu na
imprensa escrita e on line todos os comentários e reconhecimentos que a
inconfundível personalidade do historiador-jornalista merece. Julgo descortinar, entretanto, uma lacuna nessa onda de comentários e aqui
estou modestamente a colocá-la neste espaço de reflexão.)
Estive a rever as
referências que na minha participação neste blogue a obra histórica e as peças
jornalísticas de VPV suscitaram ao longo deste já longo tempo de escrita. A
melhor forma de resumir o meu posicionamento em relação ao rasto incontornável
que VPV deixa na cultura portuguesa pode resumir-se nesta contradição (por isso
o comentário-epitáfio de António Pedro Vasconcelos no Público é aquele que
talvez mais se aproxime do meu pensamento): VPV representa para mim aquilo que eu
não quereria nunca ser em termos de posição perante a vida e, simultaneamente,
o que mais desejaria ter em termos de dom da escrita (não da palavra) e da
argumentação.
Quando me afasto
inexoravelmente do que era o seu posicionamento perante a vida não me refiro à
sua propensão para gerar inimigos com os seus comentários dirigidos a
personalidades de estimação que simplesmente prolongaram a sua rebeldia, afinal
nunca plenamente concretizada e que o conduziu ao isolamento. Refiro-me antes
ao amesquinhamento voluntário e desprezo assumido por quase toda a gente no
país com aquela exceção que vale a pena compreender bem e que se chamava Mário
Soares. Refiro-me ao seu horror pela banalização da classe média e dos
remediados, que geraram crónicas do mais puro elitismo e rejeição de tudo
quanto era comportamento de massas. Refiro-me à sua propensão para desvalorizar
e até depositar no caixote do lixo das coisas sem importância obras e intelectuais,
que pelo facto de evoluírem em matérias que não dominava, o conduzia a avaliações
totalmente distorcidas, como por exemplo a completa aberração de desclassificar
a obra de Braudel. Poderíamos aqui discutir o significado da obra histórica de
VPV, cuja notoriedade resulta sobretudo da sua peculiar forma de utilização da
narrativa e do facto de ter ultrapassado a história marxista.
Deste VPV não
sentirei a falta.
Mas quando se
distanciava dos problemas e personalidades do burgo e pensava mais alto, temos
contributos inestimáveis para compreender o nosso tempo, sempre algo dispersos,
já que nunca produziu uma obra mais acabada sobre esses temas das sociedades contemporâneas.
A sua última
entrevista à revista Egoísta, datada de outubro de 2019 (que o Observador
recuperou na íntegra, link aqui, é para mim uma peça notável de reflexão sobre
temas como as democracias liberais e iliberais e a sua relação com a liberdade
e também sobre o populismo que VPV centra sobretudo na questão do nacionalismo.
Quando o jornalista lhe pergunta se existe alguma excecionalidade portuguesa a
resposta vale por muitas páginas: “Há. Tem a
ver com a nacionalidade. Já viu um povo perder um Império e continuar tão
satisfeito como estava? As conversas nacionalistas pura e simplesmente não
pegam connosco. Estamos tão confortáveis na nossa nacionalidade que é escusado.
A não ser para dizer que o Ronaldo é o melhor do mundo, não há nacionalismo que
pegue aqui. É por isso que a extrema-direita nunca vingou, mesmo com o Salazar.
O Salazar meteu a extrema-direita na cadeia e proibiu a Legião Portuguesa de
andar fardada nas ruas.”
Do VPV que destilava
fel no apoucamento de quase toda a gente não sentirei falta. Do VPV a pensar
como na sua última entrevista, sim, sentirei falta, e a página em branco do seu
diário no Público de hoje simboliza bem essa perda.
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