sábado, 22 de fevereiro de 2020

DE QUAL VPV VAMOS SENTIR FALTA?


(O desaparecimento de Vasco Pulido Valente já mereceu na imprensa escrita e on line todos os comentários e reconhecimentos que a inconfundível personalidade do historiador-jornalista merece. Julgo descortinar, entretanto, uma lacuna nessa onda de comentários e aqui estou modestamente a colocá-la neste espaço de reflexão.)

Estive a rever as referências que na minha participação neste blogue a obra histórica e as peças jornalísticas de VPV suscitaram ao longo deste já longo tempo de escrita. A melhor forma de resumir o meu posicionamento em relação ao rasto incontornável que VPV deixa na cultura portuguesa pode resumir-se nesta contradição (por isso o comentário-epitáfio de António Pedro Vasconcelos no Público é aquele que talvez mais se aproxime do meu pensamento): VPV representa para mim aquilo que eu não quereria nunca ser em termos de posição perante a vida e, simultaneamente, o que mais desejaria ter em termos de dom da escrita (não da palavra) e da argumentação.

Quando me afasto inexoravelmente do que era o seu posicionamento perante a vida não me refiro à sua propensão para gerar inimigos com os seus comentários dirigidos a personalidades de estimação que simplesmente prolongaram a sua rebeldia, afinal nunca plenamente concretizada e que o conduziu ao isolamento. Refiro-me antes ao amesquinhamento voluntário e desprezo assumido por quase toda a gente no país com aquela exceção que vale a pena compreender bem e que se chamava Mário Soares. Refiro-me ao seu horror pela banalização da classe média e dos remediados, que geraram crónicas do mais puro elitismo e rejeição de tudo quanto era comportamento de massas. Refiro-me à sua propensão para desvalorizar e até depositar no caixote do lixo das coisas sem importância obras e intelectuais, que pelo facto de evoluírem em matérias que não dominava, o conduzia a avaliações totalmente distorcidas, como por exemplo a completa aberração de desclassificar a obra de Braudel. Poderíamos aqui discutir o significado da obra histórica de VPV, cuja notoriedade resulta sobretudo da sua peculiar forma de utilização da narrativa e do facto de ter ultrapassado a história marxista.

Deste VPV não sentirei a falta.

Mas quando se distanciava dos problemas e personalidades do burgo e pensava mais alto, temos contributos inestimáveis para compreender o nosso tempo, sempre algo dispersos, já que nunca produziu uma obra mais acabada sobre esses temas das sociedades contemporâneas.

A sua última entrevista à revista Egoísta, datada de outubro de 2019 (que o Observador recuperou na íntegra, link aqui, é para mim uma peça notável de reflexão sobre temas como as democracias liberais e iliberais e a sua relação com a liberdade e também sobre o populismo que VPV centra sobretudo na questão do nacionalismo. Quando o jornalista lhe pergunta se existe alguma excecionalidade portuguesa a resposta vale por muitas páginas: “Há. Tem a ver com a nacionalidade. Já viu um povo perder um Império e continuar tão satisfeito como estava? As conversas nacionalistas pura e simplesmente não pegam connosco. Estamos tão confortáveis na nossa nacionalidade que é escusado. A não ser para dizer que o Ronaldo é o melhor do mundo, não há nacionalismo que pegue aqui. É por isso que a extrema-direita nunca vingou, mesmo com o Salazar. O Salazar meteu a extrema-direita na cadeia e proibiu a Legião Portuguesa de andar fardada nas ruas.”

Do VPV que destilava fel no apoucamento de quase toda a gente não sentirei falta. Do VPV a pensar como na sua última entrevista, sim, sentirei falta, e a página em branco do seu diário no Público de hoje simboliza bem essa perda.

Sem comentários:

Enviar um comentário