(O conflito catalão está impregnado de factos históricos
cuja interpretação faz parte do próprio conflito e dos desencontros que o povoam.
Em 6 de outubro de 1934 foi proclamada a constituição do
Estado Catalão na República Federal e o seu autor foi Luís Companys, então presidente
da Generalitat.)
Chegou-me
recentemente às mãos um livro editado pela magnífica Marcial Pons, de
autoria do catedrático de Direito Constitucional da Universidade Autónoma de
Barcelona Enric Fossas Espadaler, com o título “Companys,
golpista o salvador de la República? El juicio por los hechos de 6 de octubre
de 1934 en Cataluña”.
Trata-se de uma
análise jurídica dos factos que constituíram a República Catalã e cujos processos
judiciais haveriam de conduzir à condenação do líder catalão por 30 anos e com
base na acusação de rebelião militar contra a Constituição então vigente.
Embora o catedrático
de Direito Constitucional se esforce por não estabelecer confrontos e análises
comparativas com os acontecimentos de 2017 e posterior judicialização do
processo político catalão (em que a nova palavra sedição irrompeu no teatro de
operações), a verdade é que o livro na sua pretensa objetividade acaba por
colocar o leitor perante essa eminente e permanente comparação possível. Por
vezes temos a impressão que afinal 83 anos é pouco tempo, tamanha é a sensação
de que a história catalã se repete.
Como facto histórico,
vale a pena aqui citar duas declarações cuja versão é recuperada pelo livro, a
de Companys e a de Ventura Gassol que era então o conselheiro mais velho da
Generalitat.
A declaração de
Companys (lida obviamente em catalão):
“Catalãesm
as forças monarquizantes e fascistas que desde há algum tempo pretendiam
atraiçoar a República, atingiram o seu objetivo e tomaram o Poder. Os partidos
e os homens que se manifestaram publicamente contra a escassas liberdades da
nossa terra e os núcleos políticos que praticam constantemente o ódio e a
guerra contra a Catalunha, constituem hoje o suporte das instituições atuais.
Os factos observados proporcionam a todos os cidadãos a sensação clara de que a República,
nos seus pressupostos fundamentos democráticos, está em perigo gravíssimo.
Todas as forças autenticamente republicanas de Espanha e os setores sociais
avançados, sem distinção ou exceção, levantaram armas contra a audaz tentativa
fascista. A Catalunha liberal, democrática, republicana não pode faltar ao
protesto que triunfa por todo o país, nem pode silenciar a sua solidariedade com
os irmãos que em terras hispanas lutam até à morte pela Liberdade e pelo
Direito.
Catalunha iça a sua bandeira,
chama todos ao cumprimento do dever e à obediência que é devida ao Governo da
Generalitat, que a partir deste momento rompe todo relacionamento com as
falseadas instituições.
Nesta hora solene, em nome do
povo e do Parlamento, o Governo a que presido assume todas as competências do
Poder na Catalunha, proclama o Estado catalão da República Federal espanhola e
ao estabelecer e fortificar a relação com os dirigentes do protesto geral
contra o fascismo, convida-os a estabelecer na Catalunha o Governo Provisório
da República que concretizará no nosso povo catalão o mis generoso impulso de
fraternidade na ambição comum de edificar uma República federal, livre e
magnífica. O Governo da Catalunha estará permanentemente em contacto com o
povo. Aspiramos a estabelecer na Catalunha o reduto indestrutível da essência
da República. Convido todos os catalães a obedecerem ao Governo e que ninguém
desobedeça às suas ordens, com o entusiasmo e disciplina do povo.
Sentimo-nos fortes e invencíveis.
Manteremos à distância quem quer que seja, mas é necessário que todos se
contenham, sujeitando-se à disciplina e às ordens dos dirigentes. O Governo, a
partir deste momento, trabalhará com inexcedível energia para que ninguém possa
perturbar e comprometer os patrióticos objetivos da sua intervenção.
Catalães, a hora é grave e
dolorosa. O espírito do presidente Macià, que restaurou a Generalitat, acompanha-nos.
Cada um no seu lugar e a Catalunha
e a República no coração de todos-
Viva a República e viva a
Liberdade.”
A esta proclamação de
Companys seguiu-se a alocução de Ventura Gassol:
“Catalães, ouviram
o honorável presidente da Generalitat don Luís Companys. As suas palavras têm hoje
uma ressonância histórica que nos recorda que é o ilustre sucessor do insigne e
imortal Francisco Macià e o continuador daquela história de gestas gloriosas da
Liberdade. Eu, agora em nome do Governo, peço-vos que vos disperseis por
Barcelona e pela Catalunha para levar a boa nova da proclamação do Estado
catalão da República federal. Ajudem as forças do Governo da Catalunha a impor
a ordem, que hoje é mais indispensável do que nunca. Defendei com palavras e
com ações as liberdades contra qualquer agressão, custe o que custar e venha de
onde venha. Neste movimento de defesa da República do 14 de abril, os catalães
hão de estar sempre ao lado das esquerdas espanholas. A nossa Catalunha é
imortal. A nossa Catalunha é e será invencível , mas é preciso que cada um
esteja alerta para seguir em cada momento a voz e as ordens do Governo da
Generalitat. Catalães, viva a Catalunha. Viva a República federal.”
Não quero ser
desmancha prazeres nem reinventor da história à medida. Mas quando nos projetamos
inconscientemente na comparação, tenho a sensação de que 87 anos depois, os
factos podem ser similares mas a aura e espessura dos novos intérpretes parecem algo
desbotadas e mais frágeis.
E nestas proclamações
o novo Estado catalão e a República Federal ainda conviviam bem e se respeitavam.
O que acabou por durar pouco tempo.
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