domingo, 2 de fevereiro de 2020

CORONA-GLOBALIZAÇÃO

(A replicação do novo coronavírus, denominado 2019-nCoV, Universidade de Hong-Kong, com a devida vénia ao Expresso)


(O mundo está mergulhado numa grande contradição. A globalização já viveu melhores dias e, tal como repetidamente tenho alertado neste blogue, o populismo capturou a crítica à globalização e o recuo acontece pelos piores motivos. Mas o risco de uma pandemia em torno do Corona vírus veio mostrar que afinal a componente menos influente do avanço da globalização nos anos 80 e 90, a globalização das pessoas, conta e que os sistemas preventivos de saúde devem trabalhar a questão com mais eficácia.)

Muito antes do populismo colocar as suas garras na crítica da globalização, economistas como Dani Rodrik alertaram atempadamente que as mudanças observadas no processo de globalização na segunda metade dos anos 90, mais do que um aprofundamento natural do processo, representavam uma mudança de modelo.

Rodrik recordou recentemente o significado desse alerta numa série de testemunhos sobre os rumos atuais da globalização reunidos pela Bloomberg:

A globalização assumiu após os anos 90 uma tónica distinta, com acordos comerciais mais intrusivos e fluxos financeiros menos controlados. Isso não representava apenas mais globalização; era um modelo diferente que colocava as empresas – companhias multinacionais, a grande farmacêutica e os bancos internacionais – na condução do processo. Deu prioridade à integração dos mercados em detrimento de objetivos mais fundamentais tais como como uma prosperidade mais amplamente partilhada e segurança económica.
Quer a teoria económica quer a história mostraram que isso representava um tipo insustentável de globalização e isso ficou provado. A integração económica internacional aconteceu às custas de desintegração interna, aprofundamento de assimetrias económicas, espaciais e culturais entre vencedores e perdedores. Foi também antecipada a irrealista e não fundamentada expectativa de que as abordagens regulatórias da globalização abram uma margem de manobra às nações para reconstruir os contratos sociais internos.”

A captura populista da crítica ao processo de globalização tem conduzido ao seu recuo interrompendo a manifestação dos aspetos mais positivos da globalização.

Mas, contradição das contradições, o mundo está irremediavelmente globalizado e conectado e pelas piores razões, questões epidemiológicas de saúde, lançam o caos. Talvez o mundo tenha precipitadamente antecipado o fim de muitas doenças e, por exemplo, a perturbadora gripe das aves perturbou mais o regime chinês do que qualquer outro movimento no período após o abalo de Tiananmen. O mesmo parece estar a acontecer com a explosão do Corona vírus, sempre com o contraponto de que um regime autoritário como o chinês exerce um poder de bloqueio e de imposição de cordões sanitários e quarentenas inconcebíveis noutros contextos. Mas apesar disso e por questões organizacionais que o poder de comando e imposição não consegue disfarçar compreende-se rapidamente a dimensão do problema.

A influência das viagens e viajantes na propagação de doenças e epidemias é quase tão velha como o mundo e os historiadores referenciam já no século XIV na República de Veneza os primeiros processos de quarentena em torno da chamada Peste Negra.

Mas a contradição resulta do facto da chamada globalização humana, os fluxos de pessoas, terem sido até há bem pouco tempo a dimensão menos avançada da globalização. O desenvolvimento das incidências do corona-vírus mostra uma outra coisa: a relevância crucial dos processos cooperativos entre as organizações mundiais de saúde, mostrando que uma globalização mais cooperativa será sempre preferível à que se desenvolve através de processos “beggar-my-neighbour”, ou seja tentando resolver o nosso problema à custa do vizinho ou do parceiro.

E também não deixa de ser irónico que o foco iniciador de um problema de saúde desta natureza resulte no fundo de questões culturais enraizadas, combinadas com a trágica incidência da pobreza, mais propriamente a proximidade entre humanos e animais. Talvez fosse útil pensar nestes ensinamentos básicos de um processo com estas proporções.

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