domingo, 16 de fevereiro de 2020

“A CIÊNCIA NÃO É FEITA PARA PORTUGAL, É FEITA PARA O MUNDO”



(Uma excelente entrevista da intrépida cientista Maria Manuel Mota ao P2 do Público de hoje que é um mar de reflexões sobre o futuro da ciência em Portugal. Oportunidade para retomar alguns temas que já passaram por este espaço de opinião, mas que a notoriedade da cientista do Instituto Molecular de Medicina de Lisboa transporta para um outro plano de relevância.)

Maria Manuel Mota, a par de Elvira Fortunato e outros (poucos) cientistas, combinam a excelência científica e de investigação, internacionalmente reconhecidas, com a notoriedade na opinião pública nacional e na comunicação social, o que é raro acontecer. Desse ponto de vista, representam uma nova geração de notoriedade e excelência, sucedendo a gerações em que pontificaram personalidades como Maria de Sousa, Alexandre Quintanilha, Sobrinho Simões, João Lobo Antunes entre outros.

Quer isto significar que a opinião publicada e divulgada de personalidades e investigadores deste calibre tem um peso diferente das ideias que circulam no interior da comunidade científica em seminários, conferências e em encontros de “sábios” que alguns políticos promovem mais para reconhecimento em sede própria do que para ouvirem quem sabe e mudar em conformidade. A entrevista de Maria Manuel Mota ao P2 do Público não tem elementos substancialmente diferentes do que tenho ouvido em trabalho profissional junto de algumas comunidades científicas, mas dito por quem é para a opinião pública tem inequivocamente um outro significado e sobretudo uma outra amplitude de efeitos.

A tónica dominante que atravessa a entrevista é a da necessidade de um comportamento de liderança perseverante para enfrentar e gerir toda a série de entraves burocráticos e administrativos, preparados para uma teia de quem desconfia de toda a gente até da sua própria sombra e que não consegue materializar as boas práticas seguidas em países de referência. A palavra imprevisibilidade é proferida vezes sem conta na entrevista com tudo o que isso significa em termos de falta de condições para planear a investigação e obrigar as instituições a uma azáfama constante, de telefonemas para as pessoas certas, esperando que, por vezes, em 48 horas as aflições se resolvam, mas nem sempre.

Maria Manuel Mota refere dois temas nessa azáfama de resolver impedimentos a montante da investigação, mais propriamente a questão da contratação pública não ajustada à atividade científica e da isenção de IVA para os projetos de ciência. O testemunho da cientista do IMM está perfeitamente em linha com o que tenho ouvido em inúmeras ocasiões e encontros sobre o que as políticas públicas de I&D e Inovação vieram trazer à ciência portuguesa em termos de completamento de financiamento.

Mas para mim o conteúdo mais relevante e determinante da entrevista de MMM é aquele que repesquei para título deste post: “A ciência não é feita para Portugal, é feita para o mundo”. O alcance desta afirmação é tremendo e a cientista situa-a no âmbito da sua profunda convicção do valor da ciência quando equacionada do ponto de vista da sociedade que a promove: “É impossível pensar na ciência sem pensar na sociedade. Gostaria que tivéssemos uma sociedade que acredita que toma as melhores decisões quando se baseia no conhecimento e gostasse de estar no centro da criação do conhecimento. Na ciência é o mesmo: gostaria de ter uma política de ciência que investe em pessoas para criarem esse conhecimento”.

É neste quadro que tenho vindo a defender que é importante de uma vez por todas separar com clareza o que é a política nacional de ciência, orientada segundo os princípios defendidos por MMM e o que são os financiamentos à ciência conduzidos numa perspetiva de valorização da transferência de conhecimento segundo uma lógica de inovação, ou seja, com o foco na criação de valor por empresas que a transformam. A confusão instalada é perniciosa e a peregrina intenção de escamotear os défices de financiamento público à ciência (com o rol de imprevisibilidades mencionados por MMM) com a mobilização dos Fundos Estruturais que existem na lógica da transferência de conhecimento e da inovação tenderá, em meu entender, a acabar mal. Ambas as dimensões da ciência nacional têm o direito de existir, desde que para isso haja um escrutínio político claro sobre a alocação de recursos públicos a ambas.

Mas MMM é frontal quando refere que a ciência feita em Portugal é para o mundo e não para Portugal. Serei dos primeiros em escrutínio democrático a declarar que Portugal não pode perder a ambição de fazer ciência para o mundo, embora saiba que isso estará ao alcance de alguns e não de muitos. Isso será mais claro do que simular o financiamento a investigação segundo a lógica da transferência de conhecimento e da inovação quando se trata em alguns casos de processos de investigação que deveriam ser apoiados não nessa lógica mas na que MMM preconiza.

A continuidade artificial deste mal-entendido não é benéfica para a unidade da comunidade científica em Portugal que corre o risco de se fraturar, pois, entendamo-nos, a organização das comunidades científicas para um e outro objetivo não é similar. A orientação em função da transferência de conhecimento e da inovação exige um foco e proximidade empresarial que uma grande parte dos cientistas de excelência em Portugal não está disposto a aceitar e estarão no seu direito, acaso o poder político compreenda a necessidade de apoiar as duas vertentes, na proporção de recursos que bem entender e da valia real da excelência na ciência que é feita para o mundo.

Um novo período de programação está aí à porta e seria bom clarificar essa questão para não contaminar a sua preparação.

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