(O meu colega de blogue já aqui assinalou com a
relevância necessária o significado do desaparecimento de George Steiner e o
que ele significa como um intelectual de um tempo que está a ser difícil
renovar. Hoje cabe-me aqui referir uma surpreendente entrevista
concedida por Steiner a um amigo jornalista (link aqui) com a condição de ser apenas
divulgada após a sua morte. E na entrevista há revelações adicionais não menos surpreendentes
também relacionadas com a questão do tempo.)
A envergadura
intelectual de Steiner e o que ele representa como encarnação de um espírito
clarividente europeu deixam-nos um desafio de grandes proporções, não só em
termos do esforço necessário para dar continuidade a uma tal acumulação de
conhecimento, mas sobretudo na perspetiva do contraponto entre essa demonstração
e o que vai dominando hoje o ambiente intelectual capaz de contribuir para o
ressurgimento da Europa.
A entrevista para
publicação post mortem que alguns jornais da imprensa europeia hoje
publicaram (a minha referência foi o El País) resultou de um acordo entre
Steiner e o jornalista ensaísta italiano Nuccio Ordine, através do qual Steiner
deixa um último legado de opinião, bastante pessoal, não deixando de marcar a
sua visão do mundo.
É conhecido que
Steiner redigiu ainda as chamadas Cartas Autobiográficas, guardadas zelosamente
nos arquivos do Churchill College de Cambridge para serem publicadas apenas em
2050, ou seja, numa espécie de cálculo do crítico e ensaísta para que todas as
pessoas mais próximas tenham já abandonado este mundo e as ditas cartas possam
ser lidas com a distância necessária. Esta outra dimensão post mortem do
seu pensamento é tanto mais intrigante quanto mais Steiner refere nesta
entrevista que as cartas resultam de uma correspondência com uma interlocutora
secreta, sua amiga e confidente, durante cerca de 36 anos. Nas suas palavras,
trata-se de uma espécie de “diário partilhado” com a sua amiga e confidente
sobre o seu quotidiano e impressões e registos de toda a espécie, antevendo-se
para além da interrogação de quem se trata algo que pode constituir um
documento de profunda identificação com o tempo de Steiner.
Da entrevista hoje
publicada, em que é visível a proximidade ao ensaísta italiano que o entrevista
para a posteridade, destaco sobretudo a sua confissão, espantosa para um
crítico e ensaísta da craveira de Steiner, dando nota do seu desconforto e
frustração de não ter conseguido entrar na criatividade e na criação, quedando-se
do lado de cá, lendo e criticando, pensando e formalizando juízos críticos. Ao
mesmo tempo que expressa esta frustração, Steiner reconhece as limitações de
uma formação eminentemente clássica, do seu temperamento e dos próprios limites
da carreira académica para compreender alguns aspetos da modernidade cultural
como a expressão cinematográfica e entender fenómenos preocupantes como são o
incremento do irracionalismo e a desconstrução do mundo.
E desconcertante como
sempre foi fica aqui uma passagem de resposta à questão colocada por Ordine de
como Steiner avalia o amor (depois de responder à questão da importância da
amizade):
“O amor teve muitíssima importância, talvez
demasiada. Em primeiro lugar, a felicidade que o meu casamento me proporcionou
e que não posso explicar por palavras, racionalmente. E logo um ou dois
encontros que foram decisivos na minha vida. Creio que, em potência, as
mulheres têm uma sensibilidade superior à dos homens. Tive o enorme privilégio
de ter relações amorosas em diferentes línguas (e escrevi muito sobre este
tema). O donjuanismo poliglota foi uma enorme recompensa para mim, uma oportunidade
para viver múltiplas vidas. E é curioso que nem a psicologia nem a linguística
se tenham ocupado deste fenómeno apaixonante. Por isso em Depois de Babel
cunhei uma definição original da tradução simultânea como um bom orgasmo.
Sempre considerei o fenómeno das palavras e os silêncios e a sua relação com o
erotismo um tema crucial.”
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