quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

STEINER POST MORTEM



(O meu colega de blogue já aqui assinalou com a relevância necessária o significado do desaparecimento de George Steiner e o que ele significa como um intelectual de um tempo que está a ser difícil renovar. Hoje cabe-me aqui referir uma surpreendente entrevista concedida por Steiner a um amigo jornalista (link aqui) com a condição de ser apenas divulgada após a sua morte. E na entrevista há revelações adicionais não menos surpreendentes também relacionadas com a questão do tempo.)

A envergadura intelectual de Steiner e o que ele representa como encarnação de um espírito clarividente europeu deixam-nos um desafio de grandes proporções, não só em termos do esforço necessário para dar continuidade a uma tal acumulação de conhecimento, mas sobretudo na perspetiva do contraponto entre essa demonstração e o que vai dominando hoje o ambiente intelectual capaz de contribuir para o ressurgimento da Europa.

A entrevista para publicação post mortem que alguns jornais da imprensa europeia hoje publicaram (a minha referência foi o El País) resultou de um acordo entre Steiner e o jornalista ensaísta italiano Nuccio Ordine, através do qual Steiner deixa um último legado de opinião, bastante pessoal, não deixando de marcar a sua visão do mundo.

É conhecido que Steiner redigiu ainda as chamadas Cartas Autobiográficas, guardadas zelosamente nos arquivos do Churchill College de Cambridge para serem publicadas apenas em 2050, ou seja, numa espécie de cálculo do crítico e ensaísta para que todas as pessoas mais próximas tenham já abandonado este mundo e as ditas cartas possam ser lidas com a distância necessária. Esta outra dimensão post mortem do seu pensamento é tanto mais intrigante quanto mais Steiner refere nesta entrevista que as cartas resultam de uma correspondência com uma interlocutora secreta, sua amiga e confidente, durante cerca de 36 anos. Nas suas palavras, trata-se de uma espécie de “diário partilhado” com a sua amiga e confidente sobre o seu quotidiano e impressões e registos de toda a espécie, antevendo-se para além da interrogação de quem se trata algo que pode constituir um documento de profunda identificação com o tempo de Steiner.

Da entrevista hoje publicada, em que é visível a proximidade ao ensaísta italiano que o entrevista para a posteridade, destaco sobretudo a sua confissão, espantosa para um crítico e ensaísta da craveira de Steiner, dando nota do seu desconforto e frustração de não ter conseguido entrar na criatividade e na criação, quedando-se do lado de cá, lendo e criticando, pensando e formalizando juízos críticos. Ao mesmo tempo que expressa esta frustração, Steiner reconhece as limitações de uma formação eminentemente clássica, do seu temperamento e dos próprios limites da carreira académica para compreender alguns aspetos da modernidade cultural como a expressão cinematográfica e entender fenómenos preocupantes como são o incremento do irracionalismo e a desconstrução do mundo.

E desconcertante como sempre foi fica aqui uma passagem de resposta à questão colocada por Ordine de como Steiner avalia o amor (depois de responder à questão da importância da amizade):

O amor teve muitíssima importância, talvez demasiada. Em primeiro lugar, a felicidade que o meu casamento me proporcionou e que não posso explicar por palavras, racionalmente. E logo um ou dois encontros que foram decisivos na minha vida. Creio que, em potência, as mulheres têm uma sensibilidade superior à dos homens. Tive o enorme privilégio de ter relações amorosas em diferentes línguas (e escrevi muito sobre este tema). O donjuanismo poliglota foi uma enorme recompensa para mim, uma oportunidade para viver múltiplas vidas. E é curioso que nem a psicologia nem a linguística se tenham ocupado deste fenómeno apaixonante. Por isso em Depois de Babel cunhei uma definição original da tradução simultânea como um bom orgasmo. Sempre considerei o fenómeno das palavras e os silêncios e a sua relação com o erotismo um tema crucial.”

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