domingo, 17 de maio de 2020

AINDA O NOVO BANCO



(O alcance do meu post de ontem era totalmente político, para dar conta do meu desagrado com o comportamento dos três principais protagonistas da política atual em Portugal, Presidente da República. 1º Ministro e Ministro das Finanças e com a falta de transparência de decisões tomadas quanto à referida entidade do sistema bancário. Não visava, por isso, documentar precisões técnicas, por mais importantes que o possam ser e serei o primeiro a reconhecê-las. Porém, a amabilidade do meu Amigo e Governador do Banco de Portugal em gastar uma parcela do seu precioso tempo para me fornecer informação técnica pertinente sobre os assuntos subjacentes ao referido post, no quadro do seu habitual rigor e vontade de clarificação, justifica que volte ao assunto. Até porque considero que a informação em causa justificaria uma maior disseminação para um debate público mais consistente.

Comecemos pelo primeiro fator crítico do que designava no meu post anterior de desconchavo do Novo Banco. Reitero a minha posição de que fui dos que integrei então o grupo que teve dúvidas quanto às diferentes alternativas que se colocavam à Resolução do BES. As minhas reservas colocavam-se e ainda se colocam quanto ao modo utilizado para justificar a opção experimental pela Resolução nos termos em que foi concebida. O modo aparentemente convicto como a solução foi justificada dava a entender que havia base de experimentação anterior. Por isso, pareceu-me na altura que a nota de “o contribuinte não pagará rigorosamente nada” soou a solidez que não tinha na altura evidência a suportá-la.

A informação que me é agora disponibilizada invoca um artigo recente publicado no popular e aqui tantas vezes citado VOX, Portal do think-tank europeu CRPR: “Bank resolution frameworks in systemic crises“, assinado por Thorsten Beck, Deyan Radev e Isabel Schnabel, a última membro do conhecido grupo de peritos economistas alemães e pertencente ao corpo executivo do BCE (link aqui). O artigo analisa um universo representativo de processos de resolução deste século até ao ano de 2015, com incidência particular nas perturbações da Grande Recessão de 2007-2008 e posterior extensão para a crise das dívidas soberanas. Das várias modalidades estudadas pelos autores, que nos levariam a outros caminhos que não o traçado pelo post que justifica esta extensão, por exemplo as resoluções que envolvem processos de bail-in de credores jovens (recentes), destaco sobretudo as conclusões relativas a processos de resolução mais compreensivos. A conclusão aponta para que nesses contextos regulatórios de resolução mais compreensiva, os riscos sistémicos de choques negativos tendam a aumentar mais decisivamente, diminuindo mais acentuadamente nos casos de choques positivos (o exemplo do célebre “whatever it takes” de Draghi). Concluem os autores que os quadros de resolução mais compreensivos tendem mais a aumentar e não a mitigar riscos sistémicos. Mas o que é que isto tem que ver com o caso BES-Novo Banco? O artigo aponta curiosamente a resolução do BES como exemplo relativamente bem-sucedido no quadro comparativo estudado. Confesso que não fiquei totalmente esclarecido. Não percebi (i) se os autores consideram ou não o caso português como um exemplo de resolução compreensiva, (ii) se entendem que o  risco sistémico foi mitigado contrariando a conclusão referida anteriormente ou se (iii) o caso português constitui um exemplo de existência de autoridade de resolução, que constitui nas conclusões dos autores um fator de mitigação de risco sistémico em caso de choques negativos.

Esta informação é tecnicamente relevante, mas continuo com dúvidas sobretudo do ponto de vista dos custos e benefícios das alternativas. Persistem também as interrogações quanto ao convencimento como a ideia foi apresentada.

O segundo campo da informação adicional que me foi facultada diz respeito aos termos como foi operada a divisão entre ativos a alocar ao banco mau e ativos a alocar ao Novo Banco.

A base da informação é a própria intervenção pública do Governador na audição pública na Assembleia da República realizada em 2 de maio de 2019. Globalmente, estes elementos de informação estão na linha do rigor técnico que aquelas audições têm permitido ao Governador demonstrar. A matéria em questão diz respeito a ativos transferidos para a carteira do Novo Banco que haveriam de gerar perdas. Estamos a falar de um valor nominal global de 12,7 mil milhões de euros, com valor contabilístico líquido de imparidades de 7,8 mil milhões de euros.

A argumentação então aduzida pelo Governador parece lógica. A não inclusão desse valor de 7,8 mil milhões de euros no ativo do Novo Banco exigiria ou intervenção do Fundo de Resolução nesse mesmo montante ou agravamento da quota-parte atribuída a credores comuns do banco. Poderá discutir-se se esta última hipótese não teria sido admissível. A argumentação contrária invoca mais uma vez a questão da preservação da estabilidade financeira e por aí passo, ou seja entramos em terreno escorregadio. Como é que se mede o risco sistémico? Mais convincente parece-me o outro elemento de argumentação. Os até agora recuperados 3,3 mil milhões de euros beneficiariam a massa insolvente do BES e não a capitalização do Novo Banco. Ponto para o Governador.

Em resumo, aceito que o Fundo de Resolução não reduziria, antes pelo contrário veria as mesmas agravadas, responsabilidades acaso esses ativos que geraram perdas futuras não tivessem sido transferidos para o Novo Banco e que a probabilidade de beneficiar a massa insolvente do BES seria elevada.

Não vou entrar na terceira dimensão da nova informação que me é facultada, a questão da qualidade da avaliação dos ativos transferidos para o Novo Banco. Não só a consistência da argumentação apresentada pelo Governador me parece sólida, como tal avaliação foi objeto de interação com a avaliação da qualidade dos ativos promovida pelo BCE, a qual incidiu preferencialmente na carteira de crédito do Banco. Bom, mas estamos a falar de ativos que geraram perdas após tais avaliações. Invoca-se nesta matéria a diferença entre valor económico de um ativo, aquele que se manifesta quando a operação de recuperação se observa e o valor contabilístico que obedece a regras próprias. Compreendo perfeitamente a observação do Governador quando remete apenas para 2017 (três anos depois da Resolução) a decisão da Autoridade Bancária Europeia que privilegiou a utilização do critério do valor económico como suporte à valoração de ativos. Ou seja, se a Resolução fosse hoje operada pelo menos uma parte das famigeradas perdas seria reconhecida no momento da Resolução. Isto mostra, a meu ver, que a Resolução de 2014 foi assumida com uma rede talvez demasiado larga para a finura do material em risco.

Por fim e a extensão já vai longa (mas é justificada pelo rigor com que me foi facultada informação adicional) uma referência ao artigo de Cristina Ferreira no Público. O assunto são os chamados Créditos NPL, atentemos no que o BCE nos diz: “Um empréstimo bancário é classificado como “crédito não produtivo” (nonperforming loan – NPL) quando passaram mais de 90 dias sem que o mutuário tenha procedido ao pagamento das prestações acordadas ou dos juros. Os créditos não produtivos são também chamados “dívida de cobrança duvidosa”. Pelos vistos, a jornalista não é tão versada na matéria como deveria ser e ignora a distinção básica entre critérios de avaliação GOING CONCERN (em que há previsão de perdas), critério seguido em toda a zona da OCDE  e GONE CONCERN (que incorpora perdas registadas em momento de venda) e que implica aceleração de provisões ou registo total de perdas.

Resta mencionar que a favor da Resolução tal como foi concebida no momento relativamente experimental em que foi concretizada está a não verificação de fenómenos de fuga de capitais (para além das associadas aos offshores conhecidos) e a não interrupção de financiamento à economia, potenciando assim a recuperação observada. Quanto ao reembolso do empréstimo público agora concedido pelo sistema bancário deixarei aos meus netos uma nota testamentária para ver se os autores da experiência tinham ou não razão. Já não é para o meu tempo.

Resumindo, agradecendo o rigor e disponibilidade do Governador, o meu post não questionava a credibilidade e o rigor do seu exercício de regulação. Criticava os passes de mágica e truques de puro ilusionismo político de três personagens principais da nossa vida política. Com esta nova informação escreveria o post nos mesmos termos e talvez até fosse mais agressivo.

Sou dos que penso que o conhecimento técnico e a decisão política têm áreas de autonomia que desde muito cedo aprendi a compreender e a respeitar. Mas quando esta última se alimenta de passes de mágica e opacidade (que a densidade técnica nunca justifica) não é a preservação dessa autonomia que está em causa. É antes a sua adulteração. E isso não me agrada-


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