(A expressão “A internet não chega aos calcanhares da alegria de um simples passeio”, que nos leva a um excelente artigo de opinião de Nicholas de Monchaux, futuro chefe do Departamento de Arquitetura do MIT, no New York Times de hoje é o meu mote para celebrar dois meses de confinamento. As minhas mais empáticas experiências de trabalho foram geradas em trabalho de proximidade com arquitetos e o artigo de Monchaux traz-me de novo a um dos temas que mais me encanta fora da minha formação, a organização convivial do espaço público (link aqui).
No passado dia 11 de março realizei a minha última missão profissional em Miranda do Douro, com a força esmagadora do Douro Internacional aos pés, em companhia do meu amigo e colega Professor Mário Rui Silva. A partir dessa data, entreguei-me como muita gente neste mundo atormentado a um processo de confinamento que foi assumindo formas diversas. Como tenho referido, acompanhando, sempre em angústia, curvas simples de interpretação da pandemia por cá, por alguns países de referência e no mundo. E sem angústia porque, ao contrário de muito boa gente que se atravessou por aí, a minha preocupação era tão só a de compreender o momento em que estava, conhecendo o comportamento de uma pandemia, por mais estranha, inquieta e diferente que esta se apresente. Daí o ter referido que as polinomiais cúbicas se tornaram minhas amigas de confinamento.
Quando iniciámos cá em casa naquela data o confinamento parti para ele sem grandes expectativas de rapidez de conclusão e, mesmo hoje, já com vários países a iniciar mais cautelosa ou temerariamente o desconfinamento progressivo, mantenho essas baixas expectativas. É verdade que antecipei que a tríade governo- ciência – sociedade civil iria aguentar o embate e que a gestão prudencial do processo iria mostrar que o país responde em circunstâncias difíceis sempre que na triangulação acima não haja nenhum vértice que falhe. Como falhou no caso dos incêndios da região Centro, nesse caso o governo. Com estes anos de experiência ganhei alguma couraça contra os “maluquinhos das previsões” que emergem sempre nestas ocasiões à procura de alguma notoriedade que não conseguem alcançar em tempos normais. E, mais importante ainda, tenho a consciência de que não me posso queixar em termos de condições residenciais e de organização das casas para trabalho à distância. Antes pelo contrário, com a perceção dessas condições, mais respeito ganho por quem é obrigado a praticar essa reclusão em péssimas condições logísticas e de trabalho e menos paciência tenho para aguentar queixas de gente privilegiada.
E como, para além do mais, não sou propriamente um “conector” das relações de proximidade e telefone, gostando mais do tempo da reflexão da escrita do que do empolgamento da conversa, o confinamento e o trabalho à distância talvez tenha gerado mais comunicação da minha parte do que num período de trabalho normal e de recorrência dos fluxos casa-trabalho.
Imaginarão que vos fala um insensível. Nada disso. Tenho saudades do contacto físico com os quatro netos que irei reencontrar um dia próximo mais robustos mental e fisicamente (o Skype e o Facetime só parcialmente ajudam a compensar), de algumas esplanadas, das cavaqueiras descontraídas com os amigos mais próximos, das visitas fortuitas às livrarias enquanto flâneur obsessivo pelos livros, das aleluias em pujança de flor em Seixas que espero rever para o ano. Tínhamos uma viagem programada à Sicília e já as minhas papilas gustativas exercitavam o prazer de alguns antipasti com fruti di mare sugeridos pelos romances de Andrea Camilleri e pela personagem Comissário Montalbano quando o confinamento colocou o prazer gastronómico em modo de pausa e de esperar por melhores momentos.
Acho que não trabalhei tanto como nestes dois meses, rendi-me à Netflix, quase que me tornei num especialista de compras on line, compreendi também que posso perfeitamente passar sem o futebol e sobretudo sem o ruído insuportável das suas controvérsias (ei-las esta semana chegadas) e até voltei a fazer a barba. As telecomunicações têm se portado bem e as puxadas da NOS que ensombram a qualidade residencial da Tristão Vaz aqui bem no centro de Vila Nova de Gaia, que poderiam sugerir má conectividade, afinal são só mau aspeto. Vi on line e em tempo real espetáculos musicais que nunca veria no tempo físico, como a Gala do MET ou a gala dos laureados pela revista Gramophone. Mas os palcos estão para os artistas como o espaço público está para os flâneurs urbanos. Faltam-nos.
Por isso, continuo com expectativas de que tudo isto se possa prolongar ainda por bastante mais tempo, neste jogo do gato e do rato de desconfinar e tentar gerir as possíveis complicações. Afinal, para mim e para muita gente, confinamento não tem significado reclusão ou prisão, sobretudo depois da possibilidade de rever Seixas. Mas há sempre um passeio por espaços não organizados para esse efeito e agora até a livraria de proximidade está aberta (Os Velhotes).
O mote de Nicholas de Monchaux parece-me compatível com as minhas impressões. Talvez desta privação resulte o regresso à procura da convivialidade do espaço público. Vale a pena lê-lo e espero que os Arquitetos se reencontrem, eles próprios, não com o fetiche do edifício, mas com a reinvenção da convivialidade do espaço público.
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