sexta-feira, 29 de maio de 2020

A PANDEMIA RECONHECE A DESIGUALDADE



(Uma nota clara dos últimos dias é que, após a perceção inicial de que os efeitos da pandemia poderiam ser igualitários, a frieza continuada dos números mostra-nos que ela reconhece a desigualdade e nela encontra campo fértil para se reproduzir. Resta a questão de saber por que razão só num segundo estádio esse reconhecimento se tornou evidente).

Grassa por aí a peregrina sensação de conforto de que é tempo do Norte sossegar enquanto as gentes de Lisboa se amanham com o virar do prego para sul dos novos contágios.

Gente de pensamento míope e pequenino é o que me parece. Não ignoremos que existe uma forte integração regular de fluxos entre o Norte e Lisboa, que não fora por outra razão devido ao centralismo de que o país se alimentou e que forçou essa interação. Por isso, um possível descontrolo da evolução pandémica na Área Metropolitana de Lisboa é algo que nos deve preocupar mesmo que se tenha a situação de que a evolução dos novos casos está controlada cá por cima. Por conseguinte, é tempo de não usar as lentes do regionalismo mais serôdio e mais tonto e pensar como gente crescidinha.

O que os novos surtos da aglomeração de Lisboa nos mostram são essencialmente duas coisas.

Primeiro, que as concentrações logísticas da aglomeração lisboeta são zonas de profunda densidade, de uma diversidade imensa de situações de casa-trabalho, com utilização intensiva de transportes públicos, que convenhamos estão longe, muito longe, de poder respeitar as regras DGS da distância social. Por isso, por muito rigorosas que as empresas gestoras desses complexos logísticos sejam, e sou o primeiro a reconhecer que o são, a complexidade das origens dos fluxos casa-trabalho e a situação particular de pressão em que os transportes públicos se encontram justificam a atenção particular a estas concentrações.

Segundo, por razões que ainda não consegui totalmente inteligir, a fragilidade de grupos sociais e profissões mergulhadas na precariedade e nas consequências que daí resultam para o baixo e instável rendimento familiar parece agora ter sido reconhecida pelo vírus à solta e transformada em campo florescente de propagação. A minha interrogação é simples: porquê só agora?

Não deixa de ser uma contradição dos diabos. Pressente-se que as grandes questões da ciência em torno da compreensão do modo de funcionamento deste novo vírus irão girar em torno da explicação do modo como o sistema imunitário dos mortais e o próprio vírus. Do pouco que sei desta matéria, há uma espécie de datação que os vírus produzem sendo a partir dela que o sistema imunitário reage. Pelo que tenho lido sobre o assunto o COVID-19 não é transparente no modo como realiza essa datação e por isso o conhecimento disponível sobre o modo como o sistema imunitário está a reagir à sua presença é ainda muito débil e fragmentado. Ora o que sabemos, pelo contrário, é que o Corona reconhece bem a desigualdade nos habitats e nela encontra campo fértil de propagação. Por isso, a incidência do vírus pareceu inicialmente deixar a impressão que seria igualitário, tanto morriam inicialmente ricos como pobres. Mas rapidamente se começou a perceber que as desigualdades eram campo fértil para a propagação e para a letalidade. A pandemia não é para velhos, mas também não é para precários, pobres e essencialmente para os que não há maneira possível de aplicar a máxima “resolver primeiro a questão sanitária e só depois a questão económica”.

Por isso, talvez fosse sensato, e isto é um desabafo político, resolver de uma vez por todas questões habitacionais básicas como as que ressaltam do efeito Jamaica. Apetece-me dizer cresçam e tenham juízo. Deixem-se de questões de competitividade urbana e dediquem-se senhores Autarcas, incluindo os do PCP, a erradicar de uma vez por todas as bombas relógio sanitárias e sociais em que algumas concentrações de bairros se transformaram. Talvez fosse avisado até para que o Governo também de uma vez por todas inscreva essa batalha na sua agenda política. Sem essa preocupação, tudo o resto será uma modernidade balofa.

Sem comentários:

Enviar um comentário