(Uma nota clara dos últimos dias é que, após a perceção inicial
de que os efeitos da pandemia poderiam ser igualitários, a frieza continuada
dos números mostra-nos que ela reconhece a desigualdade e nela encontra campo
fértil para se reproduzir. Resta a questão de saber
por que razão só num segundo estádio esse reconhecimento se tornou evidente).
Grassa por aí a peregrina sensação de conforto de que é tempo do Norte
sossegar enquanto as gentes de Lisboa se amanham com o virar do prego para sul
dos novos contágios.
Gente de pensamento míope e pequenino é o que me parece. Não ignoremos que
existe uma forte integração regular de fluxos entre o Norte e Lisboa, que não
fora por outra razão devido ao centralismo de que o país se alimentou e que
forçou essa interação. Por isso, um possível descontrolo da evolução pandémica
na Área Metropolitana de Lisboa é algo que nos deve preocupar mesmo que se
tenha a situação de que a evolução dos novos casos está controlada cá por cima.
Por conseguinte, é tempo de não usar as lentes do regionalismo mais serôdio e
mais tonto e pensar como gente crescidinha.
O que os novos surtos da aglomeração de Lisboa nos mostram são essencialmente
duas coisas.
Primeiro, que as concentrações logísticas da aglomeração lisboeta são zonas
de profunda densidade, de uma diversidade imensa de situações de casa-trabalho,
com utilização intensiva de transportes públicos, que convenhamos estão longe,
muito longe, de poder respeitar as regras DGS da distância social. Por isso, por
muito rigorosas que as empresas gestoras desses complexos logísticos sejam, e
sou o primeiro a reconhecer que o são, a complexidade das origens dos fluxos
casa-trabalho e a situação particular de pressão em que os transportes públicos
se encontram justificam a atenção particular a estas concentrações.
Segundo, por razões que ainda não consegui totalmente inteligir, a fragilidade
de grupos sociais e profissões mergulhadas na precariedade e nas consequências
que daí resultam para o baixo e instável rendimento familiar parece agora ter
sido reconhecida pelo vírus à solta e transformada em campo florescente de
propagação. A minha interrogação é simples: porquê só agora?
Não deixa de ser uma contradição dos diabos. Pressente-se que as grandes
questões da ciência em torno da compreensão do modo de funcionamento deste novo
vírus irão girar em torno da explicação do modo como o sistema imunitário dos
mortais e o próprio vírus. Do pouco que sei desta matéria, há uma espécie de
datação que os vírus produzem sendo a partir dela que o sistema imunitário reage.
Pelo que tenho lido sobre o assunto o COVID-19 não é transparente no modo como
realiza essa datação e por isso o conhecimento disponível sobre o modo como o
sistema imunitário está a reagir à sua presença é ainda muito débil e
fragmentado. Ora o que sabemos, pelo contrário, é que o Corona reconhece bem a
desigualdade nos habitats e nela encontra campo fértil de propagação. Por isso,
a incidência do vírus pareceu inicialmente deixar a impressão que seria
igualitário, tanto morriam inicialmente ricos como pobres. Mas rapidamente se
começou a perceber que as desigualdades eram campo fértil para a propagação e
para a letalidade. A pandemia não é para velhos, mas também não é para
precários, pobres e essencialmente para os que não há maneira possível de
aplicar a máxima “resolver primeiro a questão sanitária e só depois a questão
económica”.
Por isso, talvez fosse sensato, e isto é um desabafo político, resolver de
uma vez por todas questões habitacionais básicas como as que ressaltam do
efeito Jamaica. Apetece-me dizer cresçam e tenham juízo. Deixem-se de questões
de competitividade urbana e dediquem-se senhores Autarcas, incluindo os do PCP,
a erradicar de uma vez por todas as bombas relógio sanitárias e sociais em que
algumas concentrações de bairros se transformaram. Talvez fosse avisado até
para que o Governo também de uma vez por todas inscreva essa batalha na sua agenda
política. Sem essa preocupação, tudo o resto será uma modernidade balofa.
Sem comentários:
Enviar um comentário