(Jornal Público)
(Os jornais deste fim de semana fazem eco de um artigo de
investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública que destaca a maior
vulnerabilidade à crise pandémica de concelhos e países com maior índice de desigualdade.
A aparente surpresa causada pelos resultados alcançados
só é justificável para aqueles cuja compreensão da desigualdade como traço
estrutural das sociedades mais desenvolvidas ou atrasadas é deficiente ou de
descoberta muito recente.)
O modo como a desigualdade é compreendida à luz dos processos e mecanismos
do desenvolvimento é, na minha interpretação deste tema, passível de pelo menos
quatro alternativas possíveis.
A primeira alternativa de interpretação,
comum aos economistas que fogem da interação entre economia e valores como o
diabo foge da cruz, tende praticamente a ignorar a desigualdade, ou pelo menos
a considerá-la um fenómeno passageiro da dinâmica económica. As dinâmicas de
mercado no interior dos países e entre países no plano da economia global
estariam permanentemente a corrigir tais diferenças. As desigualdades que
subsistam explicar-se-ão por diferentes condições pessoais e de mérito a
retribuir pelo mercado. É muito comum a expressão “não podemos ser todos
ricos”.
A segunda alternativa de interpretação,
que poderemos considerar a alternativa radical à primeira, entende a
desigualdade como a força motora sucedânea da luta de classes tal como Marx e
Engels a conceberam. Esta interpretação tende a ser politicamente
inconsequente, pois as tipologias de desigualdades são imensas e a sua
organização em termos de barganha e luta social dificilmente encontrará
intérpretes e protagonistas.
(Financial Times)
As duas restantes alternativas representam perspetivas intermédias.
Chamemos terceira alternativa à
que considera que o nível de desigualdade dos países deve ser entendido como um
critério de ponderação da qualidade do desenvolvimento. Só a dinâmica social do
desenvolvimento permitirá determinar que ponderação atribuir à desigualdade.
Existirão sociedades com maior tolerância à desigualdade e outras, pelo
contrário, que manifestarão politicamente grande incomodidade face a essa
desigualdade. Em termos talvez algo redutores do seu alcance, poderá dizer-se
que para esta alternativa a desigualdade qualifica os processos de crescimento
e desenvolvimento económico. Esta alternativa não é indiferente em termos de
políticas públicas, sobretudo nas sociedades com menor tolerância à
desigualdade. Tenderá, por isso, a influenciar o caráter distributivo das
políticas sociais e outras políticas públicas.
Finalmente, chamaremos de quarta alternativa à interpretação da desigualdade como algo de mais
dinâmico e estrutural. Não se trata apenas de qualificar o crescimento. A desigualdade
condiciona dimensões importantes da dinâmica económica como o investimento, a
dinâmica da procura e gera interdependências do ponto de vista da
vulnerabilidade ou da capacitação das sociedades. O que os investigadores da
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) concluíram é uma consequência direta
desta interpretação mais dinâmica e estrutural. A desigualdade intensifica a
vulnerabilidade das sociedades a tragédias devastadoras como a pandémica e efeitos
económicos associados e essa evidência registar-se ao nível dos países e dos
territórios, embora a medição da desigualdade nestes últimos seja mais trabalhosa
do que a observada ao nível dos países. Aliás, é nessa linha que a investigação
de Angus Deaton e Anne Case (ver post anterior, link aqui) em torno das chamadas
“mortes do desespero” nos EUA se situa. A estranha morbilidade de grupos
sociais brancos no escalão dos 40 e dos 50 só é explicável pelo agravamento da
desigualdade na distribuição do rendimento após 2007-2008 e pela total insensibilidade
e irresponsabilidade política republicana em não valorar socialmente essa
desigualdade.
Por isso, a investigação da ENSP limita-se a confirmar a dimensão
estrutural e dinâmica da desigualdade.
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