sábado, 9 de maio de 2020

DESIGUALDADE

(Jornal Público)


(Os jornais deste fim de semana fazem eco de um artigo de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública que destaca a maior vulnerabilidade à crise pandémica de concelhos e países com maior índice de desigualdade. A aparente surpresa causada pelos resultados alcançados só é justificável para aqueles cuja compreensão da desigualdade como traço estrutural das sociedades mais desenvolvidas ou atrasadas é deficiente ou de descoberta muito recente.)

O modo como a desigualdade é compreendida à luz dos processos e mecanismos do desenvolvimento é, na minha interpretação deste tema, passível de pelo menos quatro alternativas possíveis.

A primeira alternativa de interpretação, comum aos economistas que fogem da interação entre economia e valores como o diabo foge da cruz, tende praticamente a ignorar a desigualdade, ou pelo menos a considerá-la um fenómeno passageiro da dinâmica económica. As dinâmicas de mercado no interior dos países e entre países no plano da economia global estariam permanentemente a corrigir tais diferenças. As desigualdades que subsistam explicar-se-ão por diferentes condições pessoais e de mérito a retribuir pelo mercado. É muito comum a expressão “não podemos ser todos ricos”.

A segunda alternativa de interpretação, que poderemos considerar a alternativa radical à primeira, entende a desigualdade como a força motora sucedânea da luta de classes tal como Marx e Engels a conceberam. Esta interpretação tende a ser politicamente inconsequente, pois as tipologias de desigualdades são imensas e a sua organização em termos de barganha e luta social dificilmente encontrará intérpretes e protagonistas.

 (Financial Times)
As duas restantes alternativas representam perspetivas intermédias.

Chamemos terceira alternativa à que considera que o nível de desigualdade dos países deve ser entendido como um critério de ponderação da qualidade do desenvolvimento. Só a dinâmica social do desenvolvimento permitirá determinar que ponderação atribuir à desigualdade. Existirão sociedades com maior tolerância à desigualdade e outras, pelo contrário, que manifestarão politicamente grande incomodidade face a essa desigualdade. Em termos talvez algo redutores do seu alcance, poderá dizer-se que para esta alternativa a desigualdade qualifica os processos de crescimento e desenvolvimento económico. Esta alternativa não é indiferente em termos de políticas públicas, sobretudo nas sociedades com menor tolerância à desigualdade. Tenderá, por isso, a influenciar o caráter distributivo das políticas sociais e outras políticas públicas.

Finalmente, chamaremos de quarta alternativa à interpretação da desigualdade como algo de mais dinâmico e estrutural. Não se trata apenas de qualificar o crescimento. A desigualdade condiciona dimensões importantes da dinâmica económica como o investimento, a dinâmica da procura e gera interdependências do ponto de vista da vulnerabilidade ou da capacitação das sociedades. O que os investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) concluíram é uma consequência direta desta interpretação mais dinâmica e estrutural. A desigualdade intensifica a vulnerabilidade das sociedades a tragédias devastadoras como a pandémica e efeitos económicos associados e essa evidência registar-se ao nível dos países e dos territórios, embora a medição da desigualdade nestes últimos seja mais trabalhosa do que a observada ao nível dos países. Aliás, é nessa linha que a investigação de Angus Deaton e Anne Case (ver post anterior, link aqui) em torno das chamadas “mortes do desespero” nos EUA se situa. A estranha morbilidade de grupos sociais brancos no escalão dos 40 e dos 50 só é explicável pelo agravamento da desigualdade na distribuição do rendimento após 2007-2008 e pela total insensibilidade e irresponsabilidade política republicana em não valorar socialmente essa desigualdade.

Por isso, a investigação da ENSP limita-se a confirmar a dimensão estrutural e dinâmica da desigualdade.

Sem comentários:

Enviar um comentário